Quando a escrita é escorreita sinto o prazer da leitura. A leitura do livrinho “Alentejo prometido”, que prenunciava nas primeiras linhas um retrato nostálgico, depressa se transformou numa espécie de crónica antropológica que me recordou a carta de Pero Vaz de Caminha dando conta do achamento do Brasil. O relato de um mundo desconhecido.
O livro é portador de um conteúdo
que, relacionando dados e factos históricos, sociológicos e demográficos,
incomoda muitos alentejanos, talvez porque se vêem
confrontados com um exercício reflectivo, sobre si próprios, nunca antes ensaiado. E será essa
novidade que incomoda. Porém, Henrique Raposo não deixa de retratar uma terra
amada, embora escandalosamente adiada pelos poderes e, sobretudo, pelos
seus naturais.
E este contar da sua juventude
nessa terra, manifesta a decepção resultante das oportunidades perdidas e o enfatuamento
com a indolência das gentes, numa desilusão que ombreia com o fascínio pelas
coisas desconhecidas do passado, no presente ciosamente mantidas em segredo.
Não reconheço aquele “odor a
haxixe dos eucaliptos”, dois aromas que não me cheiram nada semelhantes mas, enfim,
a cada nariz a sua sentença – nem imagino o que responderia o Henrique Raposo
ao Zé Cravinho se o ouvisse dizer que os cogumelos laranjinhas (amanita dos
césares) cheiram a vagina quando já têm um par de dias para além do prazo?!
Revisitei, na caracterização que o
autor faz daqueles alentejanos, muito daquilo que deles conheço porque ao longo
de umas três décadas repeti uma peregrinação estival alentejana e, portanto vi,
vivi, e senti relativamente bem esse ambiente.
Embora pareça que nesta caracterização
subjaz a construção de um estereótipo, recrutado para a tarefa do relato/denúncia
que o autor opera, tal não deve ser confundido com um cliché ou com uma criação
meramente ficcional, pois são muitos e variados os números apresentados sobre
os fenómenos sociais e demográficos da sub-região em apreço.
Neste Alentejo, certamente nenhum dos autóctones se revê, pois para tais exercícios de percepção
é imperioso o distanciamento. Distanciamento de quem foi e se demorou e que, ao
regressar, olha para aquela planície ou para aquele monte como quem olha para uma pintura ou uma peça de
teatro e sobre eles reflecte, naquele hiato de tempo que antecede o acto mágico da pintura o voltar
a integrar como figurante na paisagem, ou o cenário o absorver para
protagonista da representação.
Claro que o livrinho teria de suscitar
indignação e as consequentes invectivações ao autor, mormente da parte dos
alfabetizados iletrados, incapazes de leituras mais sérias do que as míseras
coboiadas do Rodrigues dos Santos. Mas estou certo de que o autor agradece,
pois com tais azedumes propalados o livrinho vende-se melhor.
Já anteriormente alguns dos meus
conterrâneos algarvios haviam trilhado essa senda da apreciação literária embotada,
quando, em crítica a um terço de artigo escrito pelo mesmo autor, sobre gentes
de Odiáxere - Lagos, vociferaram, vituperaram e insultaram, sem perceberem que o artigo completo desembocava mais perto do panegírico do que do
agravo que o mísero terço destacado do texto precipitadamente insinuava.
Na era da comunicação global e da
teia de ligações electrónicas que conectam pessoas, gentalha, e sub-humanos
(estou a pensar nos feiosos do ISIS e do DAESH), e em que todos querem ter
opinião mas em que só as vozes críticas se destacam é, pois, imperioso
criticar. Criticar bradando alto, esperneando e inserindo bonequinhos de feia
catadura nas redes sociais. E por isso criticam, mesmo que não percebam a ponta
de um corno daquilo que leram ou mesmo do que falam. Declarar, é o comprovativo
de que se existe.
Assim o declaro.
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