Baixo de uma nota só



Dizia o saudoso sargento Alfarroba, antigo calafate e músico da Marinha, que “quem nasce para estopa nunca chega a ser linho”. Embora esta máxima não se aplique sempre, há casos em que o tecido em questão nem para esfregona daria. Vejamos, por exemplo, o caso do nosso estimado e algo descompassado, aprendiz de baixista, Chico, aliás Pako Sindedos, de seu nome artístico.

Este Pako, indígena algarvio bem-intencionado e de bom feitio, decidiu certa manhã, enquanto barrava a torrada com azeite e alho, que estava na altura de dar um novo rumo à vida. E porque o destino gosta de pregar partidas em ritmo de contrabaixo, a escolha recaiu sobre o instrumento mais discreto e, ao mesmo tempo, mais exigente da banda: o baixo eléctrico.

Ora, dizem os entendidos que o baixo é a espinha dorsal de qualquer música. Mas para o Pako mais parecia um labirinto de cordas sem saída. No primeiro ensaio com a “ORQUESTA EXTRELA RUÇA”, composta por quatro entusiastas da música erudita algarvia, com mais rugas na alma do que calos nos dedos, o nosso herói tropeçou logo na introdução de um clássico dos Beatles, confundindo “Come Together” com “Ó Rama Ó Que Linda Rama”. A coisa começou mal e, como era de prever, não melhorou.

Os compassos fugiam-lhe como enguias lisgosas, e a mão esquerda parecia ter-se licenciado em Sociologia: muito contacto visual, pouca acção. Já a direita… bem, a direita fazia o que podia, mas parecia estar constantemente a perguntar à esquerda: "É agora? Já? Ainda não?" E, claro, a outra não respondia.

Vieram os ensaios com bossa nova, e o Pako, cheio de entusiasmo, apresentou-se com camisa florida e sorriso tropical. Mas depressa percebeu que a suavidade enganadora do género escondia ritmos diabólicos e síncopes assassinas, sem falar nas dissonâncias. Ao fim de vinte minutos a tentar acompanhar “Garota de Ipanema”, estava tão perdido que se diz ter tocado, inadvertidamente, um excerto dos “Parabéns a Você” em tempo de valsa vienense.

O rock, por sua vez, revelou-se traiçoeiro. Durante uma versão improvisada de “Smoke on the Water”, o Pako insistiu em repetir a mesma nota com um fervor quase litúrgico, convencido de que a monotonia era, afinal, minimalismo criativo maximizado. O guitarrista, um reformado da aviação com gosto por solos épicos, fitou-o uma vez e declarou: “Rapaz, estás a tocar em ré maior, mas o resto da banda está em si menor… emocionalmente.”

O auge, o verdadeiro apogeu do descalabro, deu-se na noite da actuação ao vivo na esplanada do Infante, quando o grupo decidiu ousar interpretar o “Samba da Utopia” de Jonathan Silva. Logo ao terceiro compasso, o Pako perdeu-se num contratempo e caiu sobre o ritmo como um polvo atónito sobre um salame de chocolate. Lambuzou-se, e o samba transformou-se em samba-canção, depois saltou para um free jazz de Coliseu e, por fim, numa marcha fúnebre.

As senhoras da linha da frente, que julgavam estar a ouvir música do mundo, levantaram-se num misto de espanto e comoção, convencidas de que o grupo estava a reinterpretar as dores da crise global. Um turista alemão aplaudiu, julgando tratar-se de música de vanguarda portuguesa. E o Pako, no auge da aflição, aplicou inadvertidamente um slap que ecoou como bofetada cósmica nos tímpanos dos presentes. O silêncio que se seguiu foi digno de missa de sétimo dia.

Mas, como em todas as epopeias musicais, houve redenção. No final da noite, enquanto arrumava o amplificador, Pako Sindedos (aliás, Chico, porque já havia terminado o espectáculo), foi abraçado por uma criança de cinco anos, que lhe disse: “Gostei muito do som da tua guitarra. Parecia o vento no mar, num belíssimo dia de tempestade.”

E o Chico sorriu. Porque, mesmo sem saber distinguir um fá sustenido de um sarrajão, aprendeu que o mais importante na música, como na vida, não é acertar nas notas, mas tocar com alma, como bem postulava Sid Vicious, esse expoente do punk e mentor daquela ‘orquesta’. 

Um Sábado de 1914 no cinema

«Célebre na história de Lagos, foi o Cine-Teatro Ideal, de Simões Neto, localizado na Rua Cândido dos Reis, onde hoje se encontra o hotel Riomar. Este empresário explorou, antes, o “Salão Animatográfico” ou “Salão do Simões”, localizado na Rua do Outeiro (actual Rua Dr. Joaquim Telo), a primeira sala de cinema existente em Lagos. Em finais de 1914 ali se deu uma récita de caridade a favor das viúvas e órfãos belgas, promovida por um grupo de rapazes de Lagos.» in CASTELO, F. (2012) “O Teatro e os teatros em Lagos”.

Naquele Sábado ventoso de Novembro de 1914 esta pequena cidade algarvia foi sacudida por um inusitado alvoroço: alguns rapazes da terra, um grupo irrequieto, dado mais à traquinice do que à disciplina, organizavam uma récita de caridade em prol das viúvas e órfãos belgas, vítimas da invasão alemã à sua pátria.

O evento decorreria no Salão Animatográfico, propriedade do Sr. António Simões Neto, homem de bigode retorcido, paletó desbotado e eterno odor a cânfora. A sala, com as suas cadeiras rangentes de madeira escura, as tapeçarias desbotadas e um projector que crepitava como lareira atiçada, fora apetrechada à pressa com uma enorme cortina de sarja que fingia ser pano de boca. Ao fundo, junto à entrada de serviço, um candeeiro oscilava a cada passo, ameaçando incendiar o cartaz pintado à mão onde se lia, com pompa exagerada: «Grande Soirée Artístico-Humanitária – Entrada: 200 réis».

Os jovens intérpretes, vestidos com o que se pôde arranjar de um baú de velhas roupas da D. Ana Rijo, protectora dos talentos dramáticos da cidade, ensaiaram durante três tardes e meia uma peça cujo enredo já ninguém conseguia explicar sem tropeçar na lógica. Era, ao que constava, uma fábula alegórica sobre o sofrimento dos povos, envolvendo um ferreiro flamengo, uma princesa eslava, um pastor da Boémia e, inexplicavelmente, um fauno que versejava em alexandrinos, para além de figurantes sem papel definido.

O espectáculo começou com vinte minutos de atraso, por culpa do Taquelim, o mais novo do grupo, que perdera o sapato esquerdo no caminho e aparecera com um chinelo de senhora enfiado no pé, coberto de serapilheira para disfarçar. Quando finalmente se abriram as cortinas (na verdade, quando o pano cedeu à força conjunta de dois rapazes escondidos nos bastidores), surgiu em cena o Galvão, encarnando o ferreiro flamengo com uma pronúncia que mais parecia de Alvor, e um martelo de cozinha enfiado no cinto.

A récita decorreu num crescendo de desastres: o fauno caiu do tamborete que fazia de rochedo e rasgou as calças em frente à primeira fila; a princesa, interpretada pela M.elle Amélia Sant’Anna, desmaiou por ter apertado demasiado o espartilho, e foi reanimada com um copo de gasosa e palmadinhas pouco cerimoniosas; e o pastor da Boémia, não decorando as deixas, improvisava com rimas que faziam o público rir até às lágrimas, sobretudo quando confundiu "peidão" com "perdão" num dos monólogos mais dramáticos, em que ignorara as linhas sopradas pelo ponto, o experiente Sr. Ladeira.

Um figurante, imóvel em segundo plano, deixou tombar o cinto que lhe segurava as calças e, ao tentar, atabalhoadamente, evitar a sua descida, deu um passo atrás e pisou outro figurante, que soltou um grito agudo no exacto momento em que o ferreiro flamengo proclamava, com voz grave, ou melhor, esganiçada: –“A justiça será feita!”. E à boca de cena, o pastor da Boémia lutava, agora, contra a gravidade: a peruca escorregava-lhe lentamente sobre os olhos, conferindo-lhe o aspecto solene e perdido de um carneiro pensativo.

As melodias em surdina, arrancadas com devoto esforço por D. Clotilde Cássio ao piano decrépito, pairavam etereamente sobre a cena, tentando imprimir-lhe uma gravidade quase trágica, num esforço nobre, embora em vão. O contraste entre a música grave, que continuava a insistir numa tensão inexistente, e os tropeços cada vez mais absurdos da representação, levou os espectadores da contenção inicial à gargalhada aberta, primeiro contida, depois irresistível.

Para rematar a soirée, o Sr. Simões, visivelmente comovido (ou sensibilizado por um abafadinho generoso), ofereceu ao público uma sessão cinematográfica com "As últimas maravilhas do mundo", que consistia num documentário sobre as cheias em Paris, seguido de uma curta-metragem onde um cão perseguia um polícia, ladrando, sem que se percebesse porquê e sem que se ouvisse o ladrar do cão, já que o filme era mudo – como todos os outros da época. A fita partiu-se duas vezes e a máquina engasgava-se com estalidos que faziam os mais crédulos temer que pegasse fogo ao edifício.

A récita, no seu conjunto, foi um absoluto êxito: não pelo rigor teatral, mas pela alegria que semeou e pelos tostões que, ao fim da noite, encheram uma modesta caixa de sapatos com a inscrição "Para os Nossos Irmãos Belgas". Os senhores da cidade fingiram solenidade, as senhoras suspiraram com ternura pelos pequenos desastres e os rapazes, eufóricos, já discutiam nos bastidores o próximo espectáculo que, diziam, teria cavalos, acrobatas e fogo-de-artifício.

Para isso, porém, teriam de aguardar até 1937 e confiar no novo arrojo do Sr. Simões, a Esplanada-Jardim do Cine-Teatro Ideal, também conhecida por Hipódromo, implantada a céu aberto na Rua da Meia Laranja (hoje Rua da Estrema), a fim de antecipar, quase profeticamente, a mesma caridade para com outras viúvas e órfãos, que os alemães, reincidentes na tragédia, viriam a semear, de novo, pela Europa fora.





 

Regresso ao Passado

 


nesta rua onde os telhados conversam aos gritos
(telha contra telha, nervo contra goteira),
moram os vizinhos de sempre:
o da esquerda, com o relógio às três e o coração às avessas;
a da direita, de cabelo aos berros e alma em ponto de fervura.

 

ninguém se entende, claro.
porque a parede é fina,
mas o orgulho, grosso.

 

a vizinha coze feijões de rancor desde 82,
e o vizinho responde com pregos no silêncio do domingo.
— bom dia, diz ninguém,
— está bom é para calar-se, responde o eco.

 

a roupa no estendal dança mais do que as palavras.
e as janelas, ora abertas, ora cuspidoras de olhares.

 

há um cão que ladra por hábito
(e talvez por solidariedade com a discórdia crónica).

 

ah, se ao menos chovesse conciliação!
mas não: chove loiça, panelas sobretudo.
chove queixas na caixa do correio.
chove silêncio agudo, que corta melhor que faca.

 

a aldeia (porque isto era aldeia antes de virar bairro)
já não lembra o cheiro do pão quente 
só o calor das discussões mornas e dos muros frios.

 

e no entanto, num canto invisível da rua,
um gato dorme sobre o muro que os separa.
ronrona uma paz que ninguém ouve.
talvez amanhã alguém escute.
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Era mais ou menos assim que eu escrevia nos anos 80, numa busca pelo absurdo iniciada na década anterior, em que a escassa mestria das regras da escrita me lançava num registo nefelibata: sonhador, errante e transgressor. Hoje, escrevo sobre o mesmo tema, mas de forma diferente embora idêntico registo continue presente.

-

Naquela rua estreita onde as casas pareciam erguer-se apenas para se enfrentarem, os vizinhos não se suportavam. Não era um ódio grandioso, dramático, de punhos cerrados e lágrimas no chão, era um fastio persistente, um cansaço de convivência que se enraizava nas paredes finas e nos passos mal medidos. Cada um morava como quem ocupa uma trincheira: o homem da casa da esquerda contava os minutos para que a da direita tropeçasse na própria teimosia; e a mulher da casa da direita afivelava um sorriso de guerra sempre que o outro esquecia o lixo à porta.

Era uma relação coreografada pelo desacordo: ela cozinhava com janelas abertas para espalhar o cheiro do alho de propósito; ele batia os tapetes no muro comum sempre que sabia que ela dormia. Cumpriam, sem saber, um ritual antigo de inimizade mútua, como se tivessem nascido para o antagonismo e não soubessem já viver sem ele.

O mais curioso era que, por baixo das farpas, havia uma sintonia insuspeita. Ambos amavam hortênsias, mas fingiam desprezo por flores. Ambos deixavam água e pão para o mesmo gato vadio, mas diziam que era por piedade, não afeição. Ambos escutavam a mesma canção antiga nas noites de sábado, mas baixavam o volume assim que percebiam o outro a ouvir também.

A rua vivia deste equilíbrio dissonante. As paredes rangiam com a tensão contida, os estores subiam com um tilintar de desconfiança, os estendais abanavam como bandeiras de guerra. Ninguém ali se cumprimentava sem uma vírgula de ironia. Ninguém pedia sal sem cuspir fel.

Até que, um dia, sem aviso, tudo se dissolveu numa suspeita de revelação. O homem, ao mirar-se ao espelho, percebeu que as viagens ao passado que julgava ter feito (as cenas de outros tempos, as gentes que vira e os lugares distantes), talvez nunca tivessem sido mais do que projecções da sua própria ânsia. E com essa descoberta veio outra: também a sua vizinha, com todos os seus gestos teatrais, era apenas uma parte do mesmo enredo interior.

Percebeu, então, que toda aquela vida de birras e implicâncias era menos sobre ela e mais sobre ele. Que o mundo, com os seus vizinhos intragáveis, os seus ruídos e fantasmas, talvez sempre tivesse habitado dentro de si, e não fora. E com isso veio um certo alívio, como a acalmia que sucede ao fim de uma tempestade: uma ausência súbita de necessidade de ter razão, de responder, de vencer.

Nessa manhã, em vez de fechar a janela com estrondo, deixou-a escancarada. O vento entrou sem pedir licença e, por um instante, levou com ele o velho prazer da guerra. O gato subiu ao muro. E não houve nenhuma panela a voar.

 

P.S. - Embora o óbvio dispense enunciação, dirijo-me aos amantes de bonecos (imagens) para esclarecer: o tema não é a vizinhança, mas a escrita.


Não dialogo, declaro!

 

Temos dois ouvidos, mas apenas uma boca; portanto, a nossa natureza convida-nos a escutar mais do que a falar. Porém, cada vez mais, a sociedade se esquiva de ouvir as partes e de construir uma opinião consciente sobre os factos. No mundo actual já não há muitas discussões genuínas; as pessoas já não querem debater, preferem as suas convicções ou o silêncio. Ora, como nos diz Zygmunt Bauman: «O verdadeiro diálogo não é falar com pessoas que acreditam nas mesmas coisas que nós acreditamos».

Quem tem consciência e um nível intelectual substancial tem o dever de dizer tudo quanto pensa; só dessa forma poderá combater o achismo que prolifera nos discursos dos ignorantes. Mas é verdade que o empenho e a disponibilidade para ouvir os outros, na sua alteridade e diversidade, num diálogo sincero que aceite o diferente não como adversário, mas como concidadão partilhando dos mesmos sentimentos de fraternidade, é algo difícil na presente sociedade, em que pontifica o ruído e os dogmas irracionais partilhados por multidões.

Por exemplo: defender que devemos respeitar as opções religiosas dos outros, nomeadamente as idiotices que pretendem desmentir o conhecimento científico, equivale a colaborar em autos-de-fé semelhantes àqueles que a Santa Inquisição protagonizou ao longo de três séculos. E não é de admirar, pois o pensamento religioso está sempre pronto a apontar e a criticar, até torturar e matar, os infiéis ao seu dogma. Essa podridão religiosa, composta por Igrejas e proclamados vigários de Deus, é um lastro insuportável e retardador do progresso da Humanidade.

Peroram umas igrejas evangélicas que a Terra foi criada como Reino de Deus há cerca de 6 mil anos e, consequentemente, nada pode ser mais antigo do que isso; e que o ‘reino’ é plano e não esférico. Ora, pactuar com estes disparates constitui uma afronta ao conhecimento adquirido ao longo dos últimos milénios e representa um criminoso retrocesso civilizacional.

Acresce que esta gente desmiolada fala de ‘barriga cheia’, gozando as conquistas da Ciência e da Tecnologia, que lhes permite voar pelos ares, contactar em segundos com os antípodas e tratar com sucesso as mais verrinosas doenças. E esta gente ignorante, e as suas ideias asininas, deve ser respeitada? Gente enganada e temerária que engana outros mais, é gente cega e perigosa para a Humanidade.

O problema dos ignorantes não radica exactamente numa total ausência de conhecimento, mas no facto de terem alcançado conhecimento suficiente para acreditarem naquilo que lhes foi transmitido, mas não suficiente para o questionarem. Essa alienação mental não é uma alienação total, de quem vive à margem da sociedade e dos acontecimentos, mas uma alienação do exercício da reflexão e do questionamento permanentes. Entre a preguiça e a estultícia campeia a perigosa e destrutiva ignorância.

Face a isto, como cultivar o diálogo? Eis porque também tantos intelectuais cada vez mais optam pelo axioma: «Não dialogo, declaro!», engrossando o exército dos que já não querem conversar.




Retratos de beltrano e sicrana - por um (in)certo fulano nefelibata

 

Para escrever ficção é necessário construir personagens e dotá-las de existência verosímil, eis os perfis de duas das minhas personagens mais frequentes, descritos na primeira pessoa:

 

Monólogo num Auto-de-Fé

 

«Chegado à meia-idade — esse território onde o passado pesa mais do que o futuro promete — fui constrangido a reconhecer, com alguma lucidez e não menos ironia, aquilo que talvez sempre fui: um parvalhão. A palavra é feia, admito, mas carrega em si uma verdade crua, irrefutável, que nenhuma elegância verbal consegue disfarçar. Há, contudo, uma liberdade singular no acto de nomear o próprio ridículo: como se, ao dizê-lo, se abrisse uma brecha na couraça da vergonha e se respirasse, por fim, algum ar puro.

 

Sou, por natureza — ou talvez por deformação — um sujeito de trato difícil. Impaciente, intolerante com tudo quanto me parece inútil, superficial ou simplesmente estúpido. O problema, bem sei, é que esse juízo é por vezes precipitado, e aquilo que em mim se afirma como discernimento não passa, frequentemente, de impaciência travestida de inteligência.

 

Tenho, em suma, o pavio curto. E esse defeito — porque é, inequivocamente, um defeito — tem-me afastado de pessoas, de oportunidades, talvez até de mim mesmo. Há momentos em que tento disfarçá-lo, corrigir-lhe os efeitos, remendar o estrago; mas o ímpeto é mais veloz do que o juízo, e quando dou por mim, já disse ou fiz o que não devia.

 

Não fujo às causas. Alguns problemas de saúde, que me acompanham como uma sombra muda, acentuam esta disposição irritadiça, como se o corpo maltratado se vingasse nas palavras azedas. Mas seria demasiado cómodo atribuir tudo às maleitas. Prefiro reconhecer, com alguma vergonha e algum estoicismo, que o verdadeiro cerne da questão está na minha má educação — não no sentido da instrução académica, mas na falta de domínio sobre mim mesmo.

 

Fui, em certos momentos da vida, ofensivo, agressivo, até aviltante. E se é certo que o álcool teve a sua quota-parte de responsabilidade — não enquanto vício instalado, mas como catalisador de impulsos —, mais certo é ainda que o homem permanece, sóbrio ou embriagado, fiel à sua essência. E a minha, ao que tudo indica, inclina-se para o descomedido.

 

Hoje, no entanto, não me consumo em arrependimentos vãos. Vivo, tanto quanto posso, dentro da minha concha — ou em órbita discreta em torno dela —, sem ruído, sem ambições desmedidas, sem a ilusão de me tornar outro. Não há, nesta confissão, qualquer heroísmo. Há, talvez, um desígnio de serenidade: essa quietude que advém do reconhecimento humilde daquilo que somos, mesmo sem termos esgotado as desculpas possíveis.»

 

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Monólogo de uma Senhora Respeitável

«Sempre soube que a vida não é para os fracos. Quem espera justiça ou merecimento neste mundo, cedo se desilude. A minha ascensão não foi um acidente, nem tampouco fruto do acaso. Nasci no seio certo, filha de um homem cuja autoridade se fazia sentir mesmo nas conversas murmuradas nos corredores do poder. Viemos de longe, é certo, mas não tardou que todos soubessem quem éramos — ou, melhor dizendo, quem eu viria a ser.

Desde cedo percebi que a verdade tem pouco valor se não for convenientemente apresentada. A influência, essa sim, é a verdadeira moeda. E eu aprendi a cunhá-la com mestria. Se hoje falo, se hoje me ouvem, não é por terem algo a aprender comigo, mas porque precisam de mim para serem vistos, para existirem. Fiz do meu nome um selo de aprovação social; do meu olhar, um veredicto.

Muitos tentam reduzir-me a etiquetas banais: “influencer”, dizem com um misto de despeito e reverência. Mal sabem que a influência, quando bem jogada, não se limita a produtos ou convites para eventos. A influência verdadeira move lugares, desfaz reputações, constrói lendas — e eu domino essa arte como quem respira.

Sempre houve quem me criticasse. “Verrinosa”, murmuram — como se a acidez do engenho não fosse necessária num mundo apodrecido de hipocrisia. “Desonesta”, acusam, como se as regras tivessem sido feitas para todos. Para mim, não. Nunca foram. O que eles chamam de manipulação, eu chamo estratégia. O que apelidam de tráfico de influências, eu entendo como a justa recompensa de quem sabe posicionar-se.

Cercar-me de fieis? Naturalmente. Ninguém sobe sozinha. Mas ao contrário das almas ingénuas, eu não procuro lealdades por afecto. Procuro utilidade. Cada um tem o seu papel no tabuleiro. São peças necessárias — lambe-botas, dirão uns. Executores, corrimões, escadas humanas, digo eu. E que agradeçam, pois, sem mim, seriam irrelevantes.

Fiz o que era preciso. Fiz mais do que muitas ousariam. E não, não me arrependo. Arrependimento é coisa de quem reconhece erro — e eu jamais errei. Fui implacável, sim. Ambiciosa? Sem dúvida. Mas cobrir-me-iam de flores se fosse homem.

Se hoje opero um balanço da minha vida, não é para prestar contas, mas para medir a extensão da minha obra. E, olhando em redor, vejo que tudo, ou quase tudo, me pertence — pela acção directa ou pelo medo que instilo. Os que se afastaram? Nunca fizeram falta. Os que ficaram? Sabem a quem devem o nome que ainda ostentam.

A moral alheia nunca me guiou. Porque hei-de dobrar-me à mediocridade do senso comum? Que me julguem. Que sussurrem. Que odeiem. A verdade é esta: continuo aqui, intacta, indelével, inabalável. E eles... eles continuam a precisar de mim.»

 

 

 

 


Dia Mundial das Cooperativas

 


Inevitavelmente, ao ouvir falar em cooperativas, penso logo nas adegas cooperativas — esse supra-sumo das organizações democráticas e populares, alcandoradas a verdadeiros laboratórios onde se produziam néctares divinos. Ah, as saudosas adegas cooperativas… tão robustas como carvalhos centenários, tão simbólicas como o sino da igreja ao Domingo, e tão frequentadas como a mercearia ao fim da tarde. O seu desaparecimento, lento e inexorável como a digestão de uma feijoada ao almoço, deixou um rasto de saudade que ainda hoje se insinua nas conversas entre dentes gastos e copos (agora de supermercado) meio vazios.

As adegas cooperativas eram, para muitos, muito mais do que simples instituições de fermentação alcoólica em escala semi-industrial — eram o coração palpitante das vilas e das pequenas cidades. Era ali que o lavrador de mãos encortiçadas entregava, com a solenidade de um rito ancestral, as uvas que o sol algarvio lhe cozera na cepa. Mas a modernidade, essa madrasta apressada e algo snobe, chegou com o seu cortejo de vinhos “de autor”, “biológicos”, “com taninos civilizados” e rótulos com nomes impronunciáveis em francês. E as cooperativas, com os seus depósitos de cimento, os cartazes desbotados com as normas da Junta Nacional do Vinho – depois Direcção-Geral de Agricultura – e os seus enólogos de bigode farfalhudo, foram perdendo espaço, charme e paciência. O consumidor passou a querer vinhos com nomes de montanha e sotaque estrangeiro, desprezando o honesto “Tinto da Cooperativa”, esse fiel escudeiro das bifanas e das discussões políticas ao balcão das outras adegas — as urbanas, onde o povo ainda vai matar a sede entre dois silêncios.

Com a desactivação das adegas, abateu-se uma pequena tragédia sobre as vilas: homens outrora sóbrios em casa, mas levemente eufóricos na cooperativa, começaram a vaguear tristonhos, como galos sem poleiro. Já não havia onde ir pesar o mosto, nem onde contar, com a habitual dose de exagero, o número de caixas apanhadas “só com a ajuda do meu sobrinho, que tem asma, coitado”. E as festas da vindima? Extintas! Substituídas por newsletters de produtores boutique que enviam garrafas numeradas a clientes de Lisboa, os quais sorvem o vinho com o mindinho levantado e a sobrancelha arqueada. O povo, esse, ficou com o Lidl.

E contudo, há algo de épico — quase bíblico — na figura daquele último associado da cooperativa: o homem de boina, que ainda guarda, num barracão húmido, os registos das entregas dos anos oitenta, como quem preserva a última página de um Evangelho Rústico. Quando o encontramos, sorri com tristeza e uma réstia de orgulho, ao lembrar os tempos em que se bebia o vinho da torneira da adega, ao preço de uma moedinha, e se jurava, com convicção médica, que “o risca-de-seda de Lagos dava cabo de qualquer constipação”.

Talvez um dia regressem — não as adegas como eram, talvez, mas o espírito de comunhão, de saber partilhado, e de orgulho na vinha pobre mas valente. Até lá, brindemos (com um copo, vá, de garrafa — mas ainda com rolha de cortiça) à memória das adegas cooperativas.

Que fermentem eternamente no barril da saudade popular.



Meditação sobre uma Tiborna que foi comida

 


 

A palavra “tiborna” provém, ao que parece, do acto de provar o azeite acabado de fazer — um gesto de verificação e celebração, quase sacramental. A tiborna, assim entendida, não é apenas alimento: é prova do tempo e da terra, é ritual que marca o início de um novo ciclo agrícola, a consagração de um fruto que exige paciência, trabalho e espera. O azeite novo não é colhido: é extraído, é purificado, é decantado — e essa exigência de tempo e de transformação imprime-se no espírito da tiborna.

 

A versão com alho — a mais austera e mais penetrante — introduz um elemento ascético. O alho não é apenas condimento; é planta medicinal, de propriedades antibióticas, de sabor áspero, picante, que exige coragem para ser provado em cru. É como a palavra dura, mas verdadeira: arde, incomoda, mas cura. Talvez por isso, em certas regiões, o alho fosse tido como protecção contra maus espíritos, e a tiborna, por extensão, como alimento não apenas do corpo, mas também da alma vigilante.

 

A tiborna é um rito. Um rito que convoca os quatro elementos: o pão, nascido da terra e do labor do trigo; o azeite, ouro líquido que o olival oferece; o alho, raiz humilde e sagrada, de aroma penetrante como a verdade; e o fogo, purificador e transformador, que devolve calor ao que fora colhido com frio. O pão, o alho, o azeite — tudo provém da terra, mas tudo é transformado pelo fogo. A tiborna é, pois, um acto alquímico.

 

Filosoficamente, este alimento assume-se como paradigma de uma ética da sobriedade. Na tiborna, tudo é essencial. Nada sobra. Nada se disfarça. Cada elemento revela exactamente o que é. E, contudo, da conjugação desses poucos ingredientes nasce algo que transcende o somatório de suas partes. Há nisto uma lição de vida: que o essencial é, muitas vezes, o que mais esquecemos; que a verdade, como o alho cru, pode ser incómoda, mas purifica; que o azeite novo, como a palavra justa, deve ser colhido com tempo e derramado com parcimónia.

 

Há, pois, na tiborna, uma pedagogia do tempo e da espera. O azeite novo não se colhe antes de tempo, o alho não se planta em qualquer estação, o pão não cresce sem fermentação. A tiborna, nesse sentido, opõe-se à lógica do imediato, do efémero. Ela exige atenção, respeito pelo ritmo das coisas, disponibilidade para o simples que alimenta. Por isso, comer uma tiborna de alho é, em certo modo, um gesto ético.  E, assim, entre o alho e o pão, entre o fogo e o azeite, a tiborna afirma-se como alimento e metáfora. É pobreza que se faz riqueza. É rusticidade que se faz sabedoria. É, no fundo, um sacramento profano que nos lembra de onde vimos — e talvez, também, para onde deveríamos voltar.

 

Em suma, a tiborna é mais do que um prato pobre. É uma filosofia elementar: um saber dos elementos, uma arte de conjugar o fogo, a terra e o tempo para gerar sentido. Talvez por isso, entre tantas modas gastronómicas e efémeras, ela persista — silenciosa, quente, aromática — como quem guarda um segredo que só o silêncio e a fome conseguem decifrar.

A azeitona, essa criatura marafada


O português – e mais ainda o algarvio — tem uma relação com a comida que roça o sagrado, o terapêutico e o desportivo, de nível olímpico. Dizer que se vive para comer talvez seja exagero, mas só ligeiramente. Na verdade, em muitas casas, a pergunta “o que é o jantar?” é a frase que ecoa e atinge mais decibéis, logo de manhã, quando ainda há resquícios de café nos beiços e o pão com manteiga acabou de deslizar pela goela. A gastronomia, entre nós, não é só alimentação: é identidade, é consolo e, sobretudo, é desculpa para juntar gente.

 

Em Portugal, e particularmente no Algarve, comer é coisa séria. Uma mesa posta é mais do que pratos e talheres — é altar de convivência. No Norte, podem discutir política à mesa; no Centro, contar anedotas de padres e comadres; mas no Sul, e com especial fervor no Algarve, o convívio roda sempre à volta do tachinho, preferencialmente com tempo, coisa que, infelizmente, vai escasseando. Comer à pressa é falta de educação, e recusar comida é quase crime de lesa-pátria. Se alguém disser "só quero uma sopinha", é porque está doente.

 

Com um Sol que parece ter feito pacto com os deuses do azeite e da sardinha, o algarvio aprende cedo que o tempo bom é para estar à mesa, mas ao ar livre. Daí os quintais com mesas de pedra, os terraços com churrasqueiras e os vizinhos que aparecem "só para dar um salto", mas saem empanturrados de chouriça assada, carapaus alimados e uns copos de néctar da adega local rematados por dois calcinhos de medronho camuflados por um café pretexto.

 

Cada prato é quase uma senha de entrada para o clube secreto da portugalidade. Quem nunca se emocionou perante um arroz de polvo, uma feijoada à transmontana, ou uma caldeirada à algarvia devia ser sujeito a prova oral antes de receber o Cartão de Cidadão. E que dizer do xerém de conquilhas, esse milagre de milho e marisco que só um povo de génio culinário podia inventar?

 

E não nos esqueçamos da cataplana, que além de prato é tecnologia avançada, espécie de disco voador – um OVNI, sim –, culinário onde o mar se funde com o porco e a cebola com o vinho branco. Comer cataplana é tão ritualístico quanto um concerto de Verdi — mas com mais molho. Já o Dom Rodrigo, esse doce conventual de fios de ovos com amêndoa e açúcar, não é sobremesa: é hino nacional embrulhado em prata laminada.

 

Grande parte deste culto gastronómico vem também da saudade: da infância, da aldeia, da mãe, da tia Arminda que fazia papas de milho com berbigão e contava histórias antigas. A comida é a cápsula do tempo do português — uma forma de guardar, no palato, aquilo que já não cabe na memória.

 

O algarvio é particularmente devoto da mesa porque sabe que o mundo inteiro quer cá vir comer — ainda que venha em sandálias e de meias. O arroz de lingueirão, a moreia frita, as conquilhas à algarvia, o atum de cebolada... são mais do que iguarias: são arte popular e estratégia de diplomacia internacional. Por isso, quando um algarvio convida para jantar, não se trata apenas de uma refeição — é uma demonstração de afecto, de orgulho e, por vezes, de resistência à dieta.

 

Se os portugueses adoram comer, os algarvios fazem disso uma ciência afectiva. Sentam-se à mesa não só para matar a fome, mas para acalmar o espírito, reforçar amizades e resolver (ou esquecer) problemas. Com humor, vinho e dois dedos de conversa — esse terceiro prato sempre presente — vivem os seus dias entre tachos, grelhas, travessas e o som reconfortante de uma colher a raspar o fundo da panela.

 

Recordo um almoço de domingo na casa do tio Ernesto, um homem que levava a gastronomia tão a sério como a pontualidade no futebol — ou seja, muito. A mesa estava composta com tudo o que manda o figurino algarvio: pão caseiro, queijo de cabra curado, chouriça assada a estalar e uma travessa de salada de polvo que já fazia salivar o primo Arnaldo só de olhar.

 

No centro, como trono de um pequeno império, repousava uma jardineira de javali, cuja receita o tio Ernesto dizia ter sido passada por um monge beneditino fugitivo e ligeiramente ébrio que se fora acolher ali para as bandas de Bensafrim. — “Ninguém toca no javali antes de provar a salada de polvo!” — decretou o anfitrião, com a autoridade de quem já organizou três almoços de casamento e sobreviveu a todos.

 

A família obedeceu. Cada um serviu-se da salada com reverência, excepto a tia Lurdes, que, com as unhas recém-pintadas e uma fé inabalável na dieta mediterrânica, resolveu comer apenas uma azeitona e logo decidiu espetá-la usando um palito.

 

Foi então que sucedeu a tragédia. A azeitona, demasiado oleosa e aparentemente dotada de espírito livre, escapou-se-lhe do palito com um salto digno de uma atleta olímpica, descreveu uma parábola perfeita sobre o tacho do javali e… penetrou no decote da prima Vanessa Maria, que, naquele preciso momento, se servia de vinho, inclinada com toda a inocência do mundo.

 

O grito foi agudo, o susto geral, e o vinho tinto voou em arco, baptizando o padrinho Gilberto e pintando o guardanapo de linho da avó Odete com tons de tragédia. — “Azeitona maldita!” — exclamou a tia Lurdes, com o palito ainda em riste. A prima Vanessa sacudiu-se, o tio Ernesto suspirou com pesar pelo líquido perdido, e o primo Arnaldo aproveitou a confusão para servir-se discretamente da jardineira de javali, repetindo mentalmente a sua filosofia de vida: “quem hesita, morre de fome”. No fim, a família riu-se tanto que quase esqueceram o drama da azeitona acrobata. Quase.

 

Desde então, em cada almoço de família, há sempre alguém que, antes de começar, olha em volta e pergunta: — “Há azeitonas hoje? É só para saber onde me sento…”

 

Koniec


Hoje faz cinco anos que tudo acabou. Cinco longos anos em que venho cultivando o fracasso com a dedicação de um jardineiro japonês a podar bonsais. Tento perceber que erro cometi — se foi o respirar demasiado alto, o servir o bacalhau sem azeite virgem ou o imperdoável pecado de ter opinião própria. Sei apenas que não fui tudo aquilo que ele sempre quis: uma sombra dócil, silenciosa e com talento para passar camisas.

Vivo incompleta, dizem-me. Como se a falta de um homem que confundia afecto com controlo fosse comparável à amputação de um pulmão. Faltava-me o ar, sim, mas era por excesso dele — do dele, entenda-se, com as suas sentenças definitivas e suspiros longos de mártir não compreendido.

 

Apaixonei-me por um homem de ferro. Não daqueles bonitos, forjados à mão, com scrolls art nouveau. Não. Este era ferro de vergalhão, tosco, oxidado e por vezes cortante. Frio, arrogante, e convencido de que a sua simples presença bastava para iluminar qualquer sala — mesmo as que ele próprio escurecia com a sua empáfia de paróquia.

 

Mas dele eu vi mais. Vi o menino ferido por trás do ditador doméstico. Vi o riso fugaz que aparecia entre dois juízos de valor. Vi também a obsessão pelo controlo, a aversão ao contraditório e a arte de sair de uma discussão com um “faz como quiseres” que significava exactamente o contrário.

 

Recordo com uma certa ternura os nossos pequenos rituais conjugais: ele a explicar-me pela enésima vez como se fecha correctamente um armário; eu a tentar não espetar-lhe com o armário pela cabeça. Ou aquele domingo em que fiz panquecas e ele disse, com os olhos semi-cerrados: “Estavam boas, mas a massa podia estar menos líquida”. Que bênção, um paladar tão refinado num homem que achava que hortelã era “erva que enfeita”.

 

Sim, hoje faz cinco anos que tudo acabou. Que benção disfarçada. Ainda me lembro do som da porta a bater — com o mesmo estrondo de um sino a anunciar liberdade.

 

Cinco anos. Cento e oitenta e dois mil e quinhentas horas de liberdade condicional. Digo “condicional” porque, volta e meia, sou surpreendida por recordações invasoras, como aquela do dia em que ele me levou flores — murchas, claro, mas era o gesto que contava. O gesto de ir ao talho, comprar carne e, já que lá estava, trazer-me um molho de salsa porque achou “bonito”.

 

Tivemos uma vida a dois exemplar. No sentido em que exemplifica exactamente tudo aquilo que deve ser evitado. Dividíamos tarefas com rigor: eu cozinhava, limpava, passava e ainda sorria; ele descansava da sua intensa jornada de crítica construtiva. Nunca se esqueceu de me lembrar, com nobre constância, que estava ali para “ajudar”. Um verdadeiro mártir doméstico, capaz de abrir uma gaveta sozinho sem colapsar de exaustão emocional.

 

Ele dizia que eu era demasiado sensível, só porque me incomodava o facto de ele falar comigo como se eu fosse a funcionária de uma repartição pública a quem ele estivesse a reclamar um carimbo. “Não é nada pessoal”, dizia ele, enquanto criticava a forma como eu respirava — “Sempre a suspirar, como se estivesses num romance de cordel.”

 

Mas houve momentos felizes, claro. Momentos em que ríamos juntos, especialmente quando eu cometia algum lapso culinário e ele fazia aquele ar de chefe Michelin ofendido: “Disseste que isto era risotto? Está mais para arroz de castigo.” Era um mestre da ironia, só que sem graça. Ou talvez fosse humor britânico de tão seco. Seco e abrasivo, como uma lixa de madeira de grau 40.

 

A nossa intimidade era igualmente edificante. Um bailado erótico de rotina e pragmatismo, onde cada gesto parecia precedido de uma reunião prévia com acta assinada. Tinha todo o ardor de um protocolo notarial. Às vezes perguntava-me se não seria eu o problema — se calhar não tinha alma de secretária protocolar.

 

Lembro-me da nossa primeira viagem: três dias em Lisboa, dois deles passados a discutir se a esplanada tinha demasiada corrente de ar. Ele queria conforto. Eu queria atirar-me ao Tejo. Acabámos num hotel sem vista, mas com televisão por cabo, onde ele viu dois jogos de futebol e um documentário sobre pontes — “Sabes, há muito a aprender com a engenharia”. De facto, especialmente sobre como manter estruturas que, em condições normais, já teriam ruído.

 

Hoje olho para trás e pergunto-me: que parte de mim achou que aquele homem era uma boa ideia? Talvez tenha sido o cabelo bem penteado, ou o modo como dizia “obviamente” antes de cada frase, como se fosse um oráculo. Ou talvez tenha sido a minha própria miopia emocional — um grau considerável de esperança misturado com excesso de literatura romântica mal digerida.

 

E, apesar de tudo, agradeço-lhe. Ensinou-me o valor do silêncio, da leitura a sós e da sesta sem sermão. E sobretudo ensinou-me que há coisas piores do que a solidão: por exemplo, dividir uma cama com alguém que acredita que o seu ressonar é sinal de virilidade.

 

Sim, hoje faz cinco anos que tudo acabou. E nem uma única estátua me foi erguida em comemoração. Mas eu sigo. Insegura? Talvez. Mas garanto-vos que tanto ele como o edil — que não me erigiu uma estátua —, o Director das Finanças — que me esfola todos os meses —, o carteiro — que me deita a correspondência no quintal da vizinha —, e o meu delegado sindical — que me intruja permanentemente e come à mesa do patrão —, todos eles serão eliminados. Vou matá-los um por um, ou não me chame Vanda. Eis, meus amigos, uma forma sublime de renascimento..

 

KONIEC

(como no final dos filmes apresentados por Vasco Granja no Cinema de Animação entre 1974 e 1990)

 

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[Tanto quanto me recordo, é a primeira vez que escrevo no feminino — excluindo o conto Claustro Fobias, no qual narrei episódios da vida de uma freira; mas, nesse caso, tratava-se de um narrador externo, e não de um discurso na primeira pessoa.]

 

A Literatura e o Papel Estampado



Há, por estes dias, quem se dedique à produção de best-sellers com a ligeireza de quem nem tempo tem para os redigir. Publicam em catadupa, como se a pena lhes escorresse da mão com uma fluidez milagrosa; mas, à leitura atenta, descobre-se nas suas obras uma sucessão de estranhas e incongruentes variações de estilo, como se a cada volume correspondesse um autor diverso. E, no entanto, os leitores menos atentos — esses fiéis consumidores daquilo a que poderíamos chamar “romance à resma” — não se escandalizam com a frenética produtividade desses senhores (ou senhoras), cujos dias estão, sabemo-lo, ocupados com outros afazeres bem mais mundanos.

 

O que esses autores produzem — e que, com avidez, os livreiros colocam nos escaparates — não é literatura digna do nome, mas excremento tipográfico que usurpa o lugar reservado à verdadeira arte. Trata-se, apenas, de papel estampado com motivos recreativos, matéria de consumo efémero que não eleva, não transforma, não perdura. Não é Literatura. Não é Arte.

 

É certo que a literatura pode — e deve, em certas ocasiões — divertir, entreter, recrear. Mas não pode esgotar-se nessa função. Quando se reduz ao puro escapismo, torna-se serva do mercado, e o seu valor espiritual anula-se. E por que se impõe, então, este paradigma? Porque quem hoje determina o mercado e constrói o conceito de best-seller não é a inteligência crítica, mas a carneirada consumista que devora, das prateleiras dos hipermercados, tudo quanto o marketing editorial decide fabricar. E os editores, ávidos de lucro fácil, têm um só objectivo: vender toneladas de papel impresso, como se a quantidade substituísse a qualidade.

 

Eu escrevo — mas não sou, nem pretendo ser, escritor. Escrevo para ordenar ideias; por vezes, para me rever no que escrevo como quem se contempla num espelho; noutras ocasiões, para erigir metas que me forcem à superação. Mas, não sendo nem aspirando a ser escritor, presto a minha homenagem àqueles que sentem a vocação de escrever para os outros, e o fazem com mestria, rigor e alma.

 

Entre os que mais admiro contam-se três nomes das letras portuguesas contemporâneas: Hélder Macedo, Miguel Real e Mário Cláudio. Cada um deles, a seu modo, demonstra que a literatura não é artesanato ligeiro, mas construção laboriosa e erudita. Qualquer um destes autores ofusca, com facilidade, os chamados “jornalistas-escritores” — e outros palhaços da moda literária — que fabricam best-sellers com o mesmo espírito com que se monta um espectáculo para entreter a turba. Obras essas que estão para a Literatura como os filmes da Disney estão para a Banda Desenhada: entretenimento fácil, diversão leve… e uma boa dose de banalidade.

 

É certo que alguns desses autores não se arrogam mais do que são — e, nesse caso, não há censura que lhes caiba. Mas há outros que ocupam lugares de destaque injustamente — e em detrimento de vozes literárias autênticas, que labutam na sombra, produzindo obras de valor e de mérito.

Esta realidade não é exclusiva do mundo das letras — mas é importante recordar que, na Literatura, como em tantas outras esferas da criação, também impera a injustiça dos holofotes.

Louvado Seja o Absurdo

 


Louvado seja o senhor de todas as contradições, príncipe do paradoxo, sopro imemorial que desfaz as costuras da razão, esse lume que bruxuleia no fogão do delírio. Que importa que o mundo seja lógico, ordenado, previsível? Acaso não é no espanto, no desconcerto, no gesto inútil e na palavra vazia que o espírito verdadeiramente se expande?

 

Num tempo em que tudo se mede, se pesa e se calcula, em que os homens se curvam diante de algoritmos e fórmulas, o Absurdo permanece incalculável, ileso à razão, invencível e… gratuito. É ele quem nos diz que uma pedra se pode apaixonar por uma gaivota, que um sapato pode sangrar ou que um poema pode brotar de um muro de alvenaria. E porquê não? Quem ousa ditar o que é ou não é plausível num Universo que começou — ao que parece — com um estrondo insonoro?

 

A vida é profundamente absurda: o nascimento, a dor, o amor, o desejo, a morte — todos esses actos e estados fundamentais carecem de explicação coerente. E, no entanto, persistimos. Construímos cidades sobre leitos de cheia, sistemas de governo sobre impulsos primitivos, religiões sobre mistérios insondáveis. Amamos com sofreguidão o que não compreendemos e tememos aquilo que criámos. O Absurdo não é uma aberração da existência: é o seu cerne.

 

Abraçar o Absurdo é recusar a resignação da lógica, é celebrar o grito de Munch, a gargalhada de Antonin Artaud, a elegância estéril de uma equação insolúvel. É afirmar que há beleza no despropósito, verdade no disparate, eternidade naquilo que não serve para nada.

 

Que se ergam, pois, templos aos sem-sentido, que se desenhem mapas sem norte nem escala, que se escrevam livros que não podem ser lidos, que se amem pessoas que não existem. O Absurdo não pede submissão: oferece-nos o vértice onde o impossível se faz tangível. Que o Absurdo seja cultuado. Não como negação da realidade, mas como sua libertação. Pois só nele encontramos o consolo de sermos humanos, criaturas ilógicas, incoerentes, e, por isso mesmo, infinitamente belas. Nós, as moscas e os burros.

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- - - A Conferência entre a Mosca e o Burro - - -

 

(Cenário: um campo de couves, onde crescem também relógios e postais ilustrados. Um burro contempla o horizonte com ar meditativo. Sobre a sua cabeça poisou uma mosca, de óculos e com um livro de arquitectura debaixo da asa.)

 

Mosca: Peço licença para aterrar com dignidade filosófica. Não gosto de interromper ruminantes em processo de contemplação digestiva.

 

Burro: Está à vontade. Ultimamente tenho tido apenas pensamentos recicláveis. Aliás, comecei a pensar em voz baixa para não poluir o ambiente.

 

Mosca: Muito responsável. Já eu limitei os meus voos ao hemisfério esquerdo da realidade. O direito está congestionado com metáforas esquecidas.

 

Burro: Compreendo. Ontem mesmo tropecei numa ironia mal estacionada.

 

Mosca: É o que dá viver num mundo sem sinalética emocional. Nunca se sabe quando se atravessa uma contradição.

 

Burro: Diz-me, ó mosca de asas eruditas, o que procuras neste lombo que já carregou silêncios e enxadas?

 

Mosca: Busco um lugar onde a tolice não seja punida com seriedade. Um reduto onde possa zumbir com propósito, sem ser confundida com indecisão.

 

Burro: És mosca de palavra sábia. Já eu, ando a tentar escrever um tratado sobre a lentidão, mas cada vez que avanço uma página, a realidade corre à minha frente e faz-me caretas.

 

Mosca: Talvez devas escrever ao contrário. Começa pelo fim, como quem mastiga o tempo pela cauda.

 

Burro: Tentei, mas o fim era o mesmo que o princípio, só que de costas.

 

Mosca: Isso é o que acontece quando se vive num parágrafo circular.

 

Burro: Ou quando o mundo gira sem dar satisfações. Sabias que ontem o Sol nasceu do lado errado só para me contrariar?

 

Mosca: Isso é típico dele. O Sol tem um ego heliocêntrico. Eu, por mim, prefiro as sombras, são mais humildes e não precisam de aplauso.

 

Burro: Às vezes invejo as sombras. Têm sempre companhia. Eu, se não zurro, ninguém me nota.

 

Mosca: Não digas isso. O teu silêncio tem ecos que já perturbaram assembleias de formigas.

 

Burro: Fico sensibilizado. Queres ficar por aqui? Posso ensinar-te a arte de empurrar pensamentos com a testa.

 

Mosca: Fico sim. Em troca, posso recitar-te os tratados de higiene ilógica e partilhar o segredo das janelas fechadas que dão para o infinito.

 

Burro: Então estamos combinados. Hoje seremos companheiros de contemplação e despropósito.

 

Mosca: Um brinde mental a isso!

 

(Ambos olham na direcção do poente, onde uma nuvem se transforma lentamente numa cadeira que lê jornal.)

 

Burro: (olhando com atenção) Aquela nuvem… estás a ver? Transformou-se agora numa cadeira que lê o jornal ao contrário.

 

Mosca: É a Cadeira-Nuvem do Boletim dos Despropósitos. Costuma aparecer ao entardecer, quando as notícias já não querem ser verdade.

 

Burro: Está a franzir as pernas como se não gostasse do que lê.

 

Mosca: Provavelmente é a secção de necrologia das palavras. Há verbos que morrem de inanição quando ninguém os conjuga há décadas.

 

Burro: Sim, já me disseram que o verbo "esdruxular" desapareceu em silêncio, sem velório, apenas com um parêntesis enlutado.

 

Mosca: Triste destino. Mas, também, quem ousa esdruxular em público hoje em dia? O mundo perdeu a coragem das sílabas desnecessárias.

 

Burro: Sabes, às vezes penso que as cebolas têm mais dignidade do que nós. Elas choram por dentro, mas sem dramatismo. Descascam-se em silêncio e nunca se contradizem.

 

Mosca: As cebolas são filósofas vegetais. Já uma vez tentei fundar uma escola de pensamento baseada no tempero. Tive como discípulos dois alhos e um nabo existencialista. Mas acabou tudo numa sopa.

 

Burro: Toda a filosofia que termina em caldo merece a minha vénia.

 

Mosca: Sinto uma leve vibração no teu corpo. Estás a pensar ou a digerir?

 

Burro: Ambos. Estou a digerir uma dúvida que mastiguei de manhã: será que os postais ilustrados sabem que nunca chegam onde prometeram?

 

Mosca: Ah! Conheci um postal que se suicidou, atirando-se de uma caixa de correio por não ter sido lido. Tinha uma fotografia de um lago que não existia.

 

Burro: Pobre postal… morreu de insuficiência geográfica.

 

Mosca: Precisamente. Nunca foi compreendido. As pessoas esperam que os postais sejam felizes, coloridos, conformados. Nunca há espaço para um postal melancólico.

 

Burro: Estamos a viver um tempo onde até os objectos têm de fingir entusiasmo.

 

Mosca: Já pensei em inscrever-me numa terapia para insectos que perderam a fé no ruído.

 

Burro: Conta comigo, se precisares. Posso sempre oferecer-te um ouvido. Não os uso muito. Oiço com os olhos e interpreto com os cascos.

 

Mosca: Obrigada. És um burro raro.

 

Burro: Sou apenas alguém que não tem pressa. E isso, nos dias de hoje, já é um milagre.

 

(Pausa. O vento traz uma gargalhada perdida de outra conversa absurda. A cadeira-nuvem abana a cabeça e fecha o jornal.)

 

Mosca: Acho que a cadeira está prestes a chover.

 

Burro: Óptimo. Gosto quando os móveis mostram emoção.

 

Mosca: Vamos continuar a pensar com as patas?

 

Burro: Vamos. Hoje é um bom dia para não se chegar a conclusão nenhuma.

 

(Música imaginária semelhante à Flauta Mágica de Mozart, mas ao contrário. O silêncio faz uma vénia e o diálogo desvanece-se como um pensamento que se esqueceu de nascer.)

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Celebro, assim, os 47 anos do Jornal “O Caruncho”, um periódico mensal que exaltou o absurdo como forma estética de desconcertar a realidade. Nesse número único, feito por adolescentes irreverentes (Francisco Castelo, Carlos Dias, João Ventura, Tolentino e Fernando Almeida) destacava-se o poema de José Vieira Calado, criado de supetão à mesa da esplanada dos Dois Irmãos, a instâncias dos redactores do panfletário coleóptero:

«La technologie du perroquet

O automóvel dissolveu-se no asfalto

Vomitando barris de petróleo

Como um papagaio.»