Dizia o saudoso sargento Alfarroba, antigo calafate e músico da Marinha, que “quem nasce para estopa nunca chega a ser linho”. Embora esta máxima não se aplique sempre, há casos em que o tecido em questão nem para esfregona daria. Vejamos, por exemplo, o caso do nosso estimado e algo descompassado, aprendiz de baixista, Chico, aliás Pako Sindedos, de seu nome artístico.
Este Pako, indígena algarvio bem-intencionado e de bom feitio, decidiu certa manhã, enquanto barrava a torrada com azeite e alho, que estava na altura de dar um novo rumo à vida. E porque o destino gosta de pregar partidas em ritmo de contrabaixo, a escolha recaiu sobre o instrumento mais discreto e, ao mesmo tempo, mais exigente da banda: o baixo eléctrico.
Ora, dizem os entendidos que o baixo é a espinha dorsal de qualquer música. Mas para o Pako mais parecia um labirinto de cordas sem saída. No primeiro ensaio com a “ORQUESTA EXTRELA RUÇA”, composta por quatro entusiastas da música erudita algarvia, com mais rugas na alma do que calos nos dedos, o nosso herói tropeçou logo na introdução de um clássico dos Beatles, confundindo “Come Together” com “Ó Rama Ó Que Linda Rama”. A coisa começou mal e, como era de prever, não melhorou.
Os compassos fugiam-lhe como enguias lisgosas, e a mão esquerda parecia ter-se licenciado em Sociologia: muito contacto visual, pouca acção. Já a direita… bem, a direita fazia o que podia, mas parecia estar constantemente a perguntar à esquerda: "É agora? Já? Ainda não?" E, claro, a outra não respondia.
Vieram os ensaios com bossa nova, e o Pako, cheio de entusiasmo, apresentou-se com camisa florida e sorriso tropical. Mas depressa percebeu que a suavidade enganadora do género escondia ritmos diabólicos e síncopes assassinas, sem falar nas dissonâncias. Ao fim de vinte minutos a tentar acompanhar “Garota de Ipanema”, estava tão perdido que se diz ter tocado, inadvertidamente, um excerto dos “Parabéns a Você” em tempo de valsa vienense.
O rock, por sua vez, revelou-se traiçoeiro. Durante uma versão improvisada de “Smoke on the Water”, o Pako insistiu em repetir a mesma nota com um fervor quase litúrgico, convencido de que a monotonia era, afinal, minimalismo criativo maximizado. O guitarrista, um reformado da aviação com gosto por solos épicos, fitou-o uma vez e declarou: “Rapaz, estás a tocar em ré maior, mas o resto da banda está em si menor… emocionalmente.”
O auge, o verdadeiro apogeu do descalabro, deu-se na noite da actuação ao vivo na esplanada do Infante, quando o grupo decidiu ousar interpretar o “Samba da Utopia” de Jonathan Silva. Logo ao terceiro compasso, o Pako perdeu-se num contratempo e caiu sobre o ritmo como um polvo atónito sobre um salame de chocolate. Lambuzou-se, e o samba transformou-se em samba-canção, depois saltou para um free jazz de Coliseu e, por fim, numa marcha fúnebre.
As senhoras da linha da frente, que julgavam estar a ouvir música do mundo, levantaram-se num misto de espanto e comoção, convencidas de que o grupo estava a reinterpretar as dores da crise global. Um turista alemão aplaudiu, julgando tratar-se de música de vanguarda portuguesa. E o Pako, no auge da aflição, aplicou inadvertidamente um slap que ecoou como bofetada cósmica nos tímpanos dos presentes. O silêncio que se seguiu foi digno de missa de sétimo dia.
Mas, como em todas as epopeias musicais, houve redenção. No final da noite, enquanto arrumava o amplificador, Pako Sindedos (aliás, Chico, porque já havia terminado o espectáculo), foi abraçado por uma criança de cinco anos, que lhe disse: “Gostei muito do som da tua guitarra. Parecia o vento no mar, num belíssimo dia de tempestade.”
E o Chico sorriu. Porque, mesmo sem saber distinguir um fá sustenido de um sarrajão, aprendeu que o mais importante na música, como na vida, não é acertar nas notas, mas tocar com alma, como bem postulava Sid Vicious, esse expoente do punk e mentor daquela ‘orquesta’.