O principal trunfo do cinismo é deixar-nos espantados e
desarmados. A vida em sociedade exige algo como um princípio de credulidade,
uma confiança, mais ou menos espontânea, nos outros.
- Paulo Tunhas -
Os tempos andam malsãos. Parece que vivemos num daqueles
poemas terríveis de Sá de Miranda, onde tudo é suspeita, logro, perigo,
espanto, dissimulação, e nada é nítido. A atmosfera não é de banal má-fé. É uma
atmosfera de cinismo, de cinismo puro e duro. São coisas muito diferentes. O
homem de má-fé mente-se a si mesmo e acredita na verdade da sua mentira, o
cínico não. O cínico mente com a perfeita consciência de que está a mentir e
nem por um instante acredita no que diz. Se a má-fé pode proteger da argumentação
racional e da persuasão comum, o cinismo é, no capítulo, mil vezes mais eficaz.
Cria uma espécie de invulnerabilidade por relação a uma e outra.
O principal trunfo do cinismo é deixar-nos espantados e
desarmados. Por razões que têm provavelmente a ver com as condições básicas da
vida em sociedade, não estamos nunca suficientemente preparados para o cinismo.
A vida em sociedade exige algo como um princípio de credulidade, uma confiança,
mais ou menos espontânea, nos outros. Mesmo um céptico encartado tem de adoptar
esse princípio na sua vida quotidiana. Ora, esse princípio de credulidade
comporta, em graus variáveis, a possibilidade de reacção à má-fé e à mentira
pura e simples. Com isso aprendemos bem a viver, por mais desagradável que
seja. Não assim com o cinismo. O cinismo, mesmo para as pessoas teoricamente
mais bem preparadas para a ele reagirem, menos fáceis, por hábito ou profissão,
de se deixarem surpreender, deixa-nos inermes. Viola o princípio de credulidade
nas suas bases mais fundas. É difícil não o sentir como um escândalo.
Sem paradoxo algum, o cínico pode proclamar grandes ideais.
Não acredita neles por um só instante, é claro, mas isso obviamente em nada o
perturba. O grau de comprometimento do cínico com as suas ideias é nulo. O que,
diga-se de passagem, lhe é extremamente útil. A maior parte das pessoas vive as
suas ideias com algum comprometimento: menos com umas, mais com outras. E essa
relação de comprometimento varia, em relação a todas elas, com o tempo,
permanecendo nos melhores o amor como um ideal de comprometimento absoluto. Mas
há, em todo o caso, comprometimento efectivo. O cínico encontra-se liberto
desse fardo, e, liberto desse fardo, encontra-se igualmente disponível – dentro
da esfera das suas possibilidades, que é ditada pelas condições da sua
sobrevivência – para acolher todas as ideias que lhe surjam úteis.
Descomprometido essencialmente, pode simular comprometimentos essencialíssimos
com o que lhe apetecer.
Samuel Beckett escreveu um dia que “é preciso acreditar que
sim, mas saber que não”. É discutível que se possa verdadeiramente viver assim,
já que a crença se desdobra quase naturalmente na presunção do saber e não se
vê muito bem como a manter com a consciência do seu exacto oposto. De qualquer
maneira, o cínico não subscreveria a bela frase de Beckett. Dada a sua natureza
pragmática, descomprometida com as ideias e portanto exclusivamente pragmática,
monomaniacamente pragmática, nem acreditar que sim nem saber que não lhe
interessam. Por impossibilidade do seu ser, não se relaciona com crenças
próprias. A sua fórmula seria antes: “É preciso que os outros acreditem que sim
e não saibam que não”. E é impressionante como tem por vezes sucesso, mesmo
quando não é preciso possuir um tacto particularmente fino para não acreditarmos
que sim e sabermos que não e até para detectarmos um inquietante vazio na alma
do cínico.
Quem é convencido pelo cínico? Certamente que as pessoas de
má-fé, que sempre aspiram a ter um cínico por mestre. A má-fé aprecia o
esplendor do cinismo, o quase heroísmo do seu desprezo pela verdade e a sua
magnífica ausência de pudor. Vê nele uma liberdade que ela própria não possui.
Mas convence igualmente os ingénuos, particularmente aqueles predispostos a
acreditarem na omnipotência do pensamento de que falava Freud, que criou a
expressão para descrever a crença primitiva, ou simplesmente neurótica, numa
eficácia imediata do pensamento sobre o mundo. O descomprometimento com as
ideias do cínico permite-lhe sugerir que, no fundo, tudo é possível. E que melhor
sugestão do que essa para quem aspira a uma transformação mágica da realidade?
Os puros pensamentos agem sobre as coisas e modificam-nas. O desejo e a vontade
actuam sobre o mundo sem necessidade de quaisquer mediações. A realidade
exterior é abolida e substituída por uma projecção que satisfaz a psique. Uma
perfeição. Com o ligeiro inconveniente – que, obviamente, não preocupa o cínico
– de, por definição, conduzir a maus resultados.
Até onde pode ir o cínico? Ou, dito de outra maneira: como
se sai da hora do lobo, do tempo de indistinção e de falta de confiança em que
o cínico nos mergulha? É uma boa pergunta. Talvez quando aqueles que o toleram
em benefício próprio o traírem. Talvez quando, passada a surpresa inicial,
aquele inquietante vazio que habita a alma do cínico se tornar excessivamente
palpável e a sua fragilidade última se revelar. Talvez quando a má-fé daqueles
de que o cínico se alimenta se comece a desvanecer, por uma razão ou outra,
surto de boa-fé ou interesse de salvação pessoal. Talvez quando a bruta
realidade destruir a ilusão da omnipotência do pensamento que o cínico
habilmente instilou em muitos e de que precisa como pão para a boca para
sobreviver. Mais tarde ou mais cedo estas coisas acontecem todas, e mais cedo
do que tarde acontecerão. A questão que se coloca é: e em que estado estaremos
nós quando finalmente chegar esse momento?
tirado daqui
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