O Parlamento Europeu e os povos indígenas
Francisco Assis (Eurodeputado do PS) in PÚBLICO 5 de Julho 2018
O relatório aprovado visa alertar para a reiterada violação dos direitos
indígenas e a indevida apropriação de terras em larga escala
Há mais de cem anos, um antropólogo
norte-americano de origem alemã, Franz Boas, rompeu com a concepção de uma
antropologia evolucionista de fundamentação racista, e iniciou uma outra forma
de olhar para o mundo indígena. A sua obra constituiu uma verdadeira
reviravolta epistemológica, dotada de um enorme potencial transformador nos
planos político e cultural. Essa transformação verificou-se de facto no mundo
da antropologia, e para isso basta lembrarmos alguns dos seus nomes mais
conhecidos, como Malinowski e Lévi-Strauss. Não é certo que as consequências no
plano político tenham sido de idêntica dimensão. Ainda hoje os povos indígenas
são percebidos por largos sectores da humanidade como expressões de uma
resistência anacrónica ao progresso e à contemporaneidade. Nem o facto de a
própria ideia de progresso ter sido submetida a uma dura apreciação crítica na
cultura Ocidental conduziu a uma alteração radical desse tipo de percepção
sobre a natureza dos indígenas. Ora, esta visão concorre fortemente para o
estatuto de subalternidade que continua a afectar pelo menos 370 milhões de
seres humanos dispersos por todo o planeta, que integram a categoria de povos
indígenas. Eles são, na maior parte dos casos, objecto de um olhar racista, que
não raras vezes os remete para um estatuto quase infra-humano, que se traduz na
sujeição a uma violência real e simbólica absolutamente insuportável. Não
estamos sequer a falar da sua história nos últimos séculos, mas sim daquilo que
constitui a sua vivência presente. Os indígenas são vistos e tratados como uma
espécie de “lumpenhumanitat”, destinado a desaparecer e tratado sordidamente.
Foi justamente por ter contactado com
esta realidade, quer através de vários encontros com representantes destes
povos que se deslocaram a Bruxelas e a Estrasburgo, quer através de diversas
visitas que realizei nos últimos anos a algumas destas comunidades no espaço
latino-americano, que me empenhei na elaboração de um relatório subordinado ao
tema das violações dos direitos dos povos indígenas no mundo e da apropriação
ilegal de terras. Esse relatório foi discutido esta semana no plenário do
Parlamento Europeu em Estrasburgo e aprovado com os votos de mais de três
quartos dos deputados europeus. Num tempo de crise política e moral em grande
parte suscitada pela dificuldade em encontrar uma resposta adequada à questão
das migrações, esta expressiva votação ainda diz muito acerca do
comprometimento dos representantes políticos europeus, da direita à esquerda,
com alguns dos valores que comummente reclamamos como matriciais no projecto
europeu. É claro que é mais fácil votar a favor de um relatório do que agir de
forma consequente e útil na promoção de princípios, valores e direitos
concretamente associáveis a grupos de populações anatematizadas. Contudo, um
voto é já um compromisso, uma clara declaração de intenções, uma expressão de
um ideal regulador. Por isso mesmo, creio que o Parlamento Europeu esteve à altura
das suas responsabilidades ao aderir ao conteúdo de um texto que visa sobretudo
alertar para duas questões de inegável actualidade: a reiterada violação dos
direitos indígenas por esse mundo fora e a indevida apropriação de terras em
larga escala, por parte da indústria extractiva e do agronegócio, que põem em
causa os ancestrais direitos de algumas comunidades humanas ao usufruto da
terra e prejudicam o equilíbrio ambiental planetário devido à redução drástica
da biodiversidade e à destruição de amplas áreas florestais.
Convirá referir que não está subjacente
a este relatório qualquer propensão para a idealização acrítica dos estilos de
vida e das práticas sociais e culturais prevalecentes nas múltiplas comunidades
indígenas. Tão-pouco ignoramos a natureza complexa que caracteriza a necessária
articulação destas mesmas comunidades com os contextos sociais e estatais em
que estão inevitavelmente inseridas, para já não falarmos da sua inserção no
fenómeno da globalização. Tal como em todos os restantes casos, recusamos
qualquer perspectiva essencialista que aponte para uma identidade rígida e
fechada. É óbvio que a aceleração do tempo histórico também se repercute em
sociedades que não podem ter um estatuto a-histórico. Como sabemos, são
raríssimos os casos de comunidades indígenas que optaram pelo isolamento
voluntário em relação ao resto do mundo. Reconhecendo assim o carácter
inevitavelmente problemático das articulações atrás referidas, o que está em
causa é a salvaguarda do direito das comunidades indígenas decidirem sobre o
seu próprio futuro e sobre a natureza, o ritmo e os modos da sua interacção com
a realidade circundante.
Infelizmente, verificamos que este
direito lhes tem sido sistematicamente sonegado, o que não quer dizer que não
existam bons exemplos em vários países do mundo. Por outro lado, e sem qualquer
enfoque meramente utilitarista, temos que reconhecer que a preservação de
vastos territórios sob parcial jurisdição indígena contribui fortemente para
evitar a escalada de monoculturas agrícolas ou de gigantescas extracções
mineiras que a serem concretizadas produziriam efeitos muito negativos para
toda a humanidade.
Haverá quem argumente que a União
Europeia não dispõe de legitimidade para se pronunciar sobre este tema. A prova
mais evidente da mediocridade desta tese reside no facto de inúmeros
representantes destes povos solicitarem directamente ao Parlamento Europeu a
adopção de posições claras sobre este assunto. Não incumbindo ao Parlamento
Europeu o papel de provedor-geral da humanidade, não pode contudo deixar de o
responsabilizar o facto de, por mérito próprio, ter despertado inegáveis
expectativas em todos quantos se dedicam à salvaguarda e promoção dos direitos
humanos. Isto desautoriza um certo discurso anti-Ocidental, primário e grotesco,
que continua a ser produzido por alguns sectores mais extremistas das nossas
sociedades. Tal discurso é tão negativo como aquele, de sinal contrário, que se
extasia no enaltecimento da proclamada superioridade de uma suposta civilização
Ocidental de carácter puramente essencialista e despudoradamente racista.
Felizmente, o Ocidente não é nem uma coisa, nem outra, e o espaço político
europeu tem-se revelado o mais aberto à compreensão do outro em todos os planos
em que este se manifesta.
Que o Parlamento Europeu, no meio de
tantas urgências, de tão diversas solicitações sectoriais, de uma quase
inevitável propensão para a abordagem mecânica dos temas mais mediáticos, tenha
encontrado tempo para discutir um relatório sobre os povos indígenas é algo que
a meu ver merece ser registado. Que deputados comunistas, verdes, liberais,
conservadores, democratas-cristãos e, naturalmente, socialistas como eu
próprio, se tenham empenhado profundamente numa discussão que para muitos
poderia ser vista como ociosa ou anacrónica, revela, a meu ver, uma coisa: a
Europa está muito longe de estar tão doente como por vezes se apregoa.
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