Dantas e Negreiros



Sem nutrir grande afeição por nenhuma destas personagens sempre digo que eram dois homens de capacidades multifacetadas que nada deveriam um ao outro em matéria artística e criativa. Porém, o Dantas foi mais do que apenas isso.

Obviamente, para o irreverente Almada, Dantas era um alvo dilecto a atacar, numa campanha propagandística mordaz que lhe renderia notoriedade; afinal de contas de um lado estava um filho de ninguém que se ergueu a pulso do anonimato e do outro lado um parente de Eça de Queiroz e dos Condes de Ega (por via materna), uma figura de notoriedade nacional, médico, militar, escritor, dramaturgo, político, diplomata.

Sobre a comparação de genialidade entre os dois, reafirmo a paridade senão superioridade de Júlio Dantas face a Almada Negreiros. É que não estou a ver o Negreiros fazer um exame de admissão à faculdade de medicina respondendo em verso (quadras decassílabas) às perguntas do ponto.

E se o Negreiros era um visionário, um artista descomprometido, um espírito livre, o que dizer de um Dantas que «em 1900 defendeu uma tese “Menino Discrepante” sobre as manifestações artísticas e literárias dos loucos: Poetas e Pintores de Rilhafoles.» Um trabalho em que o cientista dá o braço ao escritor e apresenta, de forma brilhante, uma tese em que foi arguente o Prof. Miguel Bombarda?!

Quanto à irreverência social e cultural, o Dantas também não deve nada ao Negreiros. Em 1906, decorrendo em Roma o processo de canonização do Condestável Álvares Pereira, publicou um artigo na revista Ilustração Portuguesa, em que acusava as máculas do Condestável e a estranheza pelo halo de santidade em que pretendiam envolvê-lo. Pagou por tal artigo escandaloso, pois estando a aguardar a sua nomeação para médico da Guarda Municipal, acabou de ser destacado para o RI 16, com penalização visível nos seus atributos de oficial – sem direito a cavalo.

Enfim, o que o Dantas escrevia era levado a sério; tal não acontecia ao mesmo nível com o que o Negreiros produzia. Assolapado na sua casca protectora de artista modernista as suas produções dirigiam-se sobretudo aos intelectuais e artistas da época. Os demais considerariam tratar-se de um desses “artistas malucos” que por aí despontam, e não lhe davam crédito.

Finalmente, o cáustico manifesto, de escrita pueril, que diverte tantos leitores do Almada (que na sua esmagadora maioria pouco ou nada sabem sobre o Dantas) não surtiu qualquer reacção no visado, o que releva a sua superioridade moral e serenidade intelectual.

Dois homens de capacidades multifacetadas que nada deveriam um ao outro em matéria artística e criativa. Porém, o Dantas foi mais do que apenas isso.

PUM!

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