Para
escrever ficção é necessário construir personagens e dotá-las de existência
verosímil, eis os perfis de duas das minhas personagens mais frequentes,
descritos na primeira pessoa:
Monólogo
num Auto-de-Fé
«Chegado
à meia-idade — esse território onde o passado pesa mais do que o futuro promete
— fui constrangido a reconhecer, com alguma lucidez e não menos ironia, aquilo
que talvez sempre fui: um parvalhão. A palavra é feia, admito, mas carrega em
si uma verdade crua, irrefutável, que nenhuma elegância verbal consegue
disfarçar. Há, contudo, uma liberdade singular no acto de nomear o próprio
ridículo: como se, ao dizê-lo, se abrisse uma brecha na couraça da vergonha e
se respirasse, por fim, algum ar puro.
Sou,
por natureza — ou talvez por deformação — um sujeito de trato difícil.
Impaciente, intolerante com tudo quanto me parece inútil, superficial ou
simplesmente estúpido. O problema, bem sei, é que esse juízo é por vezes
precipitado, e aquilo que em mim se afirma como discernimento não passa, frequentemente,
de impaciência travestida de inteligência.
Tenho,
em suma, o pavio curto. E esse defeito — porque é, inequivocamente, um defeito
— tem-me afastado de pessoas, de oportunidades, talvez até de mim mesmo. Há
momentos em que tento disfarçá-lo, corrigir-lhe os efeitos, remendar o estrago;
mas o ímpeto é mais veloz do que o juízo, e quando dou por mim, já disse ou fiz
o que não devia.
Não
fujo às causas. Alguns problemas de saúde, que me acompanham como uma sombra
muda, acentuam esta disposição irritadiça, como se o corpo maltratado se
vingasse nas palavras azedas. Mas seria demasiado cómodo atribuir tudo às
maleitas. Prefiro reconhecer, com alguma vergonha e algum estoicismo, que o
verdadeiro cerne da questão está na minha má educação — não no sentido da
instrução académica, mas na falta de domínio sobre mim mesmo.
Fui,
em certos momentos da vida, ofensivo, agressivo, até aviltante. E se é certo
que o álcool teve a sua quota-parte de responsabilidade — não enquanto vício
instalado, mas como catalisador de impulsos —, mais certo é ainda que o homem
permanece, sóbrio ou embriagado, fiel à sua essência. E a minha, ao que tudo
indica, inclina-se para o descomedido.
Hoje,
no entanto, não me consumo em arrependimentos vãos. Vivo, tanto quanto posso,
dentro da minha concha — ou em órbita discreta em torno dela —, sem ruído, sem
ambições desmedidas, sem a ilusão de me tornar outro. Não há, nesta confissão,
qualquer heroísmo. Há, talvez, um desígnio de serenidade: essa quietude que
advém do reconhecimento humilde daquilo que somos, mesmo sem termos esgotado as
desculpas possíveis.»
-
Monólogo de uma Senhora Respeitável
«Sempre soube que a vida não é para os fracos. Quem espera justiça ou merecimento neste mundo, cedo se desilude. A minha ascensão não foi um acidente, nem tampouco fruto do acaso. Nasci no seio certo, filha de um homem cuja autoridade se fazia sentir mesmo nas conversas murmuradas nos corredores do poder. Viemos de longe, é certo, mas não tardou que todos soubessem quem éramos — ou, melhor dizendo, quem eu viria a ser.
Desde cedo percebi que a verdade tem pouco valor se não for convenientemente apresentada. A influência, essa sim, é a verdadeira moeda. E eu aprendi a cunhá-la com mestria. Se hoje falo, se hoje me ouvem, não é por terem algo a aprender comigo, mas porque precisam de mim para serem vistos, para existirem. Fiz do meu nome um selo de aprovação social; do meu olhar, um veredicto.
Muitos tentam reduzir-me a etiquetas banais: “influencer”, dizem com um misto de despeito e reverência. Mal sabem que a influência, quando bem jogada, não se limita a produtos ou convites para eventos. A influência verdadeira move lugares, desfaz reputações, constrói lendas — e eu domino essa arte como quem respira.
Sempre houve quem me criticasse. “Verrinosa”, murmuram — como se a acidez do engenho não fosse necessária num mundo apodrecido de hipocrisia. “Desonesta”, acusam, como se as regras tivessem sido feitas para todos. Para mim, não. Nunca foram. O que eles chamam de manipulação, eu chamo estratégia. O que apelidam de tráfico de influências, eu entendo como a justa recompensa de quem sabe posicionar-se.
Cercar-me de fieis? Naturalmente. Ninguém sobe sozinha. Mas ao contrário das almas ingénuas, eu não procuro lealdades por afecto. Procuro utilidade. Cada um tem o seu papel no tabuleiro. São peças necessárias — lambe-botas, dirão uns. Executores, corrimões, escadas humanas, digo eu. E que agradeçam, pois, sem mim, seriam irrelevantes.
Fiz o que era preciso. Fiz mais do que muitas ousariam. E não, não me arrependo. Arrependimento é coisa de quem reconhece erro — e eu jamais errei. Fui implacável, sim. Ambiciosa? Sem dúvida. Mas cobrir-me-iam de flores se fosse homem.
Se hoje opero um balanço da minha vida, não é para prestar contas, mas para medir a extensão da minha obra. E, olhando em redor, vejo que tudo, ou quase tudo, me pertence — pela acção directa ou pelo medo que instilo. Os que se afastaram? Nunca fizeram falta. Os que ficaram? Sabem a quem devem o nome que ainda ostentam.
A moral alheia nunca me guiou. Porque hei-de dobrar-me à mediocridade do senso comum? Que me julguem. Que sussurrem. Que odeiem. A verdade é esta: continuo aqui, intacta, indelével, inabalável. E eles... eles continuam a precisar de mim.»
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