A Queda dum Anjo

A Queda de um Anjo

Há livros que nos servem de espelho e há espelhos que, por desgraça, nos devolvem o retrato inteiro. “A Queda de um Anjo”, de Camilo Castelo Branco, é desses que não se lêem sem certa prudência, não vá o leitor, inesperadamente, ver-se ao virar da página. E se Camilo tivesse frequentado uma daquelas academias de estudos esotéricos, decerto nos teria legado “A Queda de um Anjo Iniciado”.

O protagonista desta versão alegórica não é um político seduzido pelos salões do poder, como Calisto Elói, mas alguém que, subindo degrau após degrau, alcança posição de prestígio entre os seus pares, por quem era tido como exemplo de virtude, sabedoria e paciência de santo.

Durante anos, a sua palavra soou justa, a sua advertência tida por fraternal, e o seu nome murmurado com respeito. Não era um santo, entenda-se, mas possuía aquele brilho sereno que o tornava, aos olhos dos outros, quase um “raio de luz”, expressão que ele, modesto, aceitava com o ar de quem já se sente meio canonizado.

Mas, tal como no romance de Camilo, a ascensão terminou em queda. Aquele que pregava a humildade revelou servir-se dos irmãos como degraus para as suas ambições. Invocando os saberes acumulados, foi transformando a confiança em servidão e a fraternidade em instrumento de domínio. E bastou-lhe um trono simbólico, um título sonante e uma assembleia obediente para que o anjo acabasse por revelar a sua verdadeira natureza.

O nosso iniciado, tão hábil em citar Luz, começou a confundir iluminação com foco cénico, e verdade com eco. Pregava humildade em voz alta porque, sabia, a humildade precisa de boa acústica; e enquanto os irmãos aplaudiam, ele agradecia com aquele sorriso piedoso de quem já se imagina busto.

Não houve relâmpago na sua ruína, apenas o lento desmoronar da confiança dos iguais, ao verem apodrecer um carácter que julgavam incorruptível. Quando o véu caiu (porque todo o véu acaba por cair), o que restou foi um individuo perplexo diante do espelho, perguntando-se por que motivo a sua Luz se apagara. Ora, não se apagara, apenas fora absorvida pelo brilho do próprio ego, esse sol interior que derrete tudo. E os confrades, reflectindo, concluíram: - Há os que sobem para servir, e há aqueles que se servem para subir.

Se Camilo o narrasse, tê-lo-ia feito com uma gargalhada amarga, escrevendo na margem: “Eis mais um anjo que quis voar sobre um altar e acabou pendurado num triângulo.” E, para remate da história, direi, com licença dos santos e dos anjos, que o mundo não carece de mais iluminados, mas de quem saiba acender a Luz sem se deslumbrar com o próprio reflexo.

O nosso Anjo Iniciado caiu, sim, mas caiu com elegância, o que é uma forma de continuar de pé na memória dos ingénuos. E quando alguém o vir ainda a discursar sobre virtude, não o interrompa, deixai-o brilhar; a natureza sempre quis ter um exemplo vivo de como o orgulho é um vício que, mesmo desmascarado, continua a pedir palco e luz de ribalta.




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