A névoa subia do rio como
uma emanação dos mortos, envolvendo a cidade de Lagos num torpor húmido e mudo.
As casas, debruçadas sobre a avenida marginal, pareciam túmulos com janelas, e
nelas tremiam luzes baças, como olhos de velas prestes a extinguir-se.
Na extremidade da rua Miguel Bombarda, junto ao quartel, vivia o relojoeiro Hilário Furtado, homem de pulso firme e semblante ausente, que raramente falava e nunca sorria. Ali possuía também a sua oficina, no piso térreo da casa onde, dizia-se, afinava relógios como quem afina almas, e cujo pêndulo predilecto, um velho regulador de prata, batia ao compasso do seu coração.
Na noite de 31 de Outubro, ao regressar da taberna, encontrou diante da oficina um objecto que não lhe pertencia, uma pequena lanterna de vidro negro, envolta num farrapo de desperdício (estopa), com uma argola enferrujada e uma inscrição gravada em letras miúdas: «Para ver o que o tempo esconde.»
O relojoeiro, levado pela curiosidade mórbida dos que vivem demasiado tempo sozinhos, acendeu-a. Mas a chama que nasceu dentro do vidro era escura, um lume que devorava a própria claridade. As sombras da oficina deformaram-se, torcendo-se em formas humanas, e os ponteiros dos relógios começaram a mover-se desordenadamente, noutras direcções que o tempo nunca ousara seguir.
Então ouviu-se um tique-taque que não vinha de relógio algum, e uma voz antiga, rouca e metálica, soou do fundo da lanterna: - Pagas agora o tempo que roubaste.
O ar tornou-se espesso como
chumbo; os ponteiros pararam e o relojoeiro, com o rosto banhado por um clarão
negro, sentiu o coração bater dentro do vidro. Um instante depois, a oficina
ficou vazia.
Na manhã seguinte, os vizinhos que se atreveram a entrar pela porta escancarada encontraram todos os relógios sincronizados, marcando a meia-noite exacta, e, sobre o balcão, a lanterna ainda acesa, projectando na parede a sombra de um homem curvado que se movia lentamente.
Desde então, nas noites de Halloween, quem ousa passar diante da oficina fechada jura ouvir o tique-taque subtil de um coração que nunca deixou de contar os segundos da sua própria eternidade.

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