Deus em versão Beta

 



Se tentava relacionar-se com mulheres, duas coisas podiam acontecer: raramente elas aceitavam o relacionamento, ou logo consideravam assédio aquela tímida tentativa de aproximação. Farto de más interpretações, passou a ignorá-las, e às crianças também, com receio de que um simples olhar pudesse ser tido por crime. Com o tempo, adquiriu o saudável hábito de nada ver, nada ouvir e nada sentir.

Havia aspectos da vida que, por segurança, remetera para o domínio da fantasia, interditando-lhes o regresso à realidade. Era mais prudente assim. Neste ambiente assexuado e higiénico decorria a sua existência de solteirão de meia-idade, homem ordeiro, pontual, imune às tentações do romantismo. As novelas, com os seus beijos fabricados e as suas lágrimas importadas, pareciam-lhe relíquias de um mundo que ainda acreditava na emoção.

Engenheiro de profissão, programava a vida com o rigor de um manual de instruções. Evitava os imprevistos como quem evita a peste, e tratava os relacionamentos humanos como avarias potenciais. Mantinha distância profiláctica de tudo e de todos e vivia assim, purificado de humanidade.

Mas a culpa, essa fiel companheira, nunca o abandonava. Não era culpa teológica; Deus, se existisse, já teria sido despedido por incompetência, mas culpa doméstica, educacional, cultural. A culpa dos erros cometidos e dos outros apenas imaginados, a culpa dos fracassos e, pior ainda, dos sucessos indevidos. Essa culpa, fermentada ao longo dos anos, transformara-se numa força moral que o impelia à imobilidade. Temia falhar; e, para não falhar, era preferível não agir.

A rotina instalou-se como uma religião sem altar: o dia dividido em horários, as emoções numeradas, os gestos calibrados. Nessa ausência de risco e de novidade cultivava-se a santa mediania, o ideal nacional de virtude. A mediocridade tornara-se o verdadeiro sacramento: quem não ousava, redimia-se.

A culpa é uma patologia da mente, perturba o equilíbrio, rouba a liberdade, apaga a harmonia e a tolerância. Quem vive no erro e encara a humanidade como essencialmente errática não reconhece a qualidade do que é simplesmente suficiente. Só vê os extremos, a mediocridade e a excelência, esquecendo que o mundo é feito das infinitas gradações entre ambos. Assim, torna-se incapaz de admitir que os outros possam ser suficientemente perfeitos para criar o que é bom e belo.

Equivocado, torna-se refém de um pecado que só existe na irracionalidade dos dogmas. O nosso engenheiro era, pois, um homem fechado, como tantos outros, prisioneiros na caverna de Platão, entretidos a discutir a qualidade da escuridão: ”Aqui, está mais escuro”; “Não, não, o negro aqui é que é mais escuro, aí é muito pálido!”

Um dia, três desses prisioneiros evadem-se. O primeiro, fiel à tradição, mantém-se de costas para a luz, ofendido com a claridade. O segundo enlouquece à vista do real, era luminosidade a mais e revelava sujidades e imperfeições. O terceiro, o nosso engenheiro, resolve libertar-se de vez, corta as amarras mentais, renega o passado, rejeita os preconceitos, as tradições e até a língua que lhe ensinaram.

Funda então uma religião nova, mais moderna, mais líquida; e uma nova sociedade, sem classes, sem sexos, sem nomes, sem contradições, um verdadeiro paraíso de indistinções. A sexualidade dissolve-se num mar morno de indivíduos neutros, de identidades solúveis, de paixões pasteurizadas. O objectivo é a fusão com o todo; que cada criatura seja simultaneamente o bicho e a maçã, a árvore e a terra, o adubo e o jardineiro, a água e o sol.

E assim, passo a passo, evolui-se para a forma mais perfeita da existência, o ser unicelular, sem cérebro, sem culpa, sem vontade, sem pecado, sem história e, felizmente, sem opinião. No final, nem consciência lhe resta para descobrir que se tornou Deus.

 


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