A ADSE é um
privilégio dos funcionários públicos que dá prejuízo e é financiado por todos
os contribuintes?
Classificação do Polígrafo: FALSO
14 fev 2019 08:53
O QUE ESTÁ EM CAUSA?
Enquanto vários grupos
privados de saúde anunciam a intenção de romper os acordos que mantêm com a
ADSE, abundam os comentários e publicações nas redes sociais em que se
classifica a ADSE como um privilégio dos funcionários públicos, fonte de
avultados prejuízos que têm de ser suportados por todos os contribuintes.
Leitores do Polígrafo pediram para verificar se é assim mesmo.
O sistema de Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado (ADSE)
foi criado em 1963 e atualmente é gerido pela Direção Geral de Proteção Social
aos Trabalhadores em Funções Públicas (ADSE-DG). A ADSE assegura aos seus cerca
de 1,3 milhões de quotizados a possibilidade do recurso a prestadores
privados, através de dois regimes: o regime convencionado, no qual
o quotizado, utilizando a rede de prestadores com os quais existem convenções,
suporta um copagamento, sendo a ADSE responsável pelo pagamento do remanescente
do preço ao prestador; e o regime livre, no qual o quotizado exerce
total liberdade de escolha e suporta a totalidade dos encargos, sendo depois
parcialmente reembolsado pela ADSE.
De acordo com a “Auditoria ao Sistema de Proteção Social dos Trabalhadores
em Funções Públicas - ADSE”, realizada pelo Tribunal de Contas (Relatório
Nº12/2015), “o desconto cobrado aos quotizados aumentou 158%
entre 2009 e 2014, obtendo-se neste ano uma cobertura dos custos
diretamente da responsabilidade da ADSE (custos de administração, custos com o
regime livre e custos com o regime convencionado) na ordem dos 136%”.
Ou seja, mediante o aumento do desconto cobrado aos quotizados, essa receita
passou a cobrir totalmente os “custos diretamente responsabilidade da ADSE”,
aliás superando largamente tal despesa.
Uma das principais conclusões da referida auditoria sublinha que
“até ao ano de 2013, os quotizados da ADSE beneficiaram do
financiamento público do sistema, em complemento aos seus descontos. Em
contrapartida, o Estado exerceu a gestão estratégica e financeira da ADSE,
utilizando-a para prosseguir fins públicos associados às funções sociais do
Estado. A partir de 2013, verificaram-se aumentos da taxa de desconto
aplicável às remunerações e pensões dos quotizados da ADSE,
justificados pela necessidade de garantir a autossustentabilidade do sistema”.
“O aumento da taxa de desconto de 2014, que partiu de proposta do Governo e
não da ADSE-DG, enquanto entidade gestora do sistema, não resultou de
necessidades de financiamento de curto ou médio prazo da ADSE, mas da
necessidade, decorrente do Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades
de Política Económica, de compensar a redução do financiamento público do
sistema”, ressalva a auditoria. “De facto, o aumento não decorreu de
ajustamentos no esquema de benefícios, nem foi precedido de qualquer estudo
sobre a sustentabilidade do sistema no médio-longo prazo, ou, sequer,
justificado pelas necessidades de tesouraria de curto prazo”.
“Como consequência desse aumento, a receita proveniente do desconto dos
quotizados revelou-se, em 2014, manifestamente excessiva (em 138,9 milhões
de euros) face às necessidades de financiamento do esquema de benefícios (regimes
livre, convencionado e custos de administração). A situação excedentária
mantém-se no Orçamento do Estado para 2015, considerando o excedente que
decorre dos mapas orçamentais: 89,4 milhões, mais 20% do que as
necessidades previstas de financiamento do esquema de benefícios”, indica o
Tribunal de Contas.
Uma auditoria concluiu
que “a ADSE não é, atualmente, um benefício concedido pelo Estado aos
seus trabalhadores, mas uma cobertura complementar de cuidados de saúde, paga
de forma solidária pelos próprios quotizados e não pelos restantes
contribuintes."
Mais, “estes excedentes estão a ser utilizados em proveito do
Estado, como forma de resolver problemas de equilíbrio do Orçamento do
Estado através do aumento artificial da receita pública, dada a inexistência
de qualquer fundamentação sobre a sua proporcionalidade face aos objetivos de
autofinanciamento e de sustentabilidade do sistema no médio-longo prazo”. Ou
seja, além de cobrirem todos os custos da ADSE, os descontos dos respetivos
quotizados também serviram para financiar o Orçamento do Estado, sendo
contabilizados como receita pública. Esta situação foi identificada em 2015,
sublinhe-se, não havendo ainda dados do Tribunal de Contas sobre as contas dos
anos seguintes.
“Sendo financiada
pelo rendimento disponível dos trabalhadores e aposentados da Administração
Pública para satisfação de cuidados de saúde prestados aos mesmos, a
ADSE deverá ser excluída das disputas ideológicas que opõem o setor público de
prestação de cuidados de saúde ao privado, e vice-versa”, prossegue o
relatório.
No entanto, há um relatório mais recente do Tribunal de Contas sobre a
ADSE, mais especificamente a “Auditoria de Seguimento das Recomendações
formuladas no Relatório de Auditoria ao Sistema de Proteção Social dos Trabalhadores
em Funções Públicas - ADSE”. Trata-se do Relatório
Nº8/2016, o qual sustenta que “a ADSE não é, atualmente, um
benefício concedido pelo Estado aos seus trabalhadores, mas uma cobertura
complementar de cuidados de saúde, paga de forma solidária pelos próprios
quotizados e não pelos restantes contribuintes. A ADSE é um sistema
complementar do Serviço Nacional de Saúde, à semelhança dos seguros voluntários
de saúde, e não um sistema substitutivo do Serviço Nacional de Saúde. Os
quotizados/beneficiários da ADSE, antes de o serem, já são, por imperativo
constitucional e legal, utentes e financiadores/contribuintes do Serviço
Nacional de Saúde”.
“Sendo financiada pelo rendimento disponível dos trabalhadores e
aposentados da Administração Pública para satisfação de cuidados de
saúde prestados aos mesmos, a ADSE deverá ser excluída das disputas ideológicas
que opõem o setor público de prestação de cuidados de saúde ao
privado, e vice-versa”, prossegue o relatório. Ao tornar os quotizados da ADSE
os financiadores exclusivos do sistema em 2014, o Estado alterou a
natureza do financiamento, ‘privatizando’ a receita. A natureza
dos descontos da ADSE aproxima-se da dos prémios pagos pelos titulares
de seguros voluntários de saúde privados, sendo estes também uma forma
complementar de financiamento de cuidados de saúde face ao Serviço Nacional de
Saúde”.
Em suma, a partir da
mudança introduzida em 2013, com o término do financiamento público da ADSE e o
aumento exponencial dos descontos efetuados pelos quotizados, a ADSE deixou de
poder ser considerada como um privilégio dos funcionários públicos e, em vez de
prejuízo, chegou ao ponto de gerar receita adicional para o Orçamento do
Estado.
O mesmo relatório deixa um alerta: “É errado pressupor que a ADSE é
sustentável, a prazo, na sua configuração atual. Com base num estudo
realizado por entidade independente, a pedido da ADSE, a ADSE não é sustentável
para além de 2024, apresentando défices a partir de 2019. Se o crescimento
anual da despesa for superior ao considerado neste cenário, a ADSE pode já
apresentar défices a partir de 2017 e não ser sustentável em 2020”.
Entre as causas para essa previsão de insustentabilidade, destaca-se a “a
diminuição do número de quotizados da ADSE e o seu envelhecimento”,
“a concorrência do setor segurador, o qual beneficia com o
desmantelamento da ADSE ou com a saída por renúncia de quotizados seus”, ou “a
apropriação, pelo Governo da República, de 29,8 milhões de euros dos
excedentes da ADSE, em 2015, para financiar o Serviço Regional de Saúde da
Madeira, bem como a retenção ilegal dos descontos de
quotizados da ADSE por parte de organismos do Governo Regional da Madeira, e
sua utilização indevida para fins de âmbito regional”.
“Saliente-se que o alargamento da base de quotizados a novos quotizados
líquidos é condição sine qua non para a sobrevivência,
a prazo, da ADSE (recorde-se que, atualmente, por cada quotizado que
efetua descontos existem 1,5 beneficiários não contribuintes)”, conclui o
relatório.
Em suma, a partir da mudança introduzida em 2013, com o término do
financiamento público da ADSE e o aumento exponencial dos descontos efetuados
pelos quotizados, a ADSE deixou de poder ser considerada como um privilégio dos
funcionários públicos e, em vez de prejuízo, chegou ao ponto de gerar receita
adicional para o Orçamento do Estado. “A natureza dos descontos da
ADSE aproxima-se da dos prémios pagos pelos titulares de seguros
voluntários de saúde privados”, salienta o relatório de 2016 do Tribunal de
Contas. Ainda falta analisar as contas dos anos mais recentes, mas
segundo os dados disponíveis neste momento é falso dizer que a ADSE gera
prejuízo ou que é sustentada/financiada pelos contribuintes no geral e não
apenas pelos respetivos quotizados.
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