O Príncipe dos Palermas

Era a rapariga mais bonita da cidade. A paixão começou logo na primeira vez que a vi, no liceu, num cenário digno de um contre-plongée hitchcockiano: ela descia as escadas com um vestido translúcido, revelando bastante das suas formas, mas deixando ainda mais à imaginação. Corria o ano de 1976.

Anos depois, cruzávamo-nos de vez em quando, em casa de amigos comuns, nas típicas noites de escuta partilhada de rock e blues importados. Um dia, após ter confidenciado ao anfitrião o meu enlevo por ela, soube que a mensagem lhe fora passada. Talvez por curiosidade, convidou-me para irmos ao cinema. Fomos. Sentámo-nos na segunda plateia, bem visíveis, ela à minha esquerda — uma posição dissuasora de quaisquer avanços tácticos da minha mão direita. Não sou canhoto. Era claro que estávamos ali como amigos, apenas isso.

A certa altura interromperam a sessão para anunciar que o Primeiro-Ministro Sá Carneiro falecera num acidente de aviação. Era 4 de Dezembro de 1980.

Reagindo com a leve insolência típica da juventude militante — era então um anarquista por teimosia, simpatizante das esquerdas — proferi um comentário despropositado sobre o defunto. Ela, horrorizada, repreendeu-me por encontrar qualquer forma de regozijo na morte de alguém. Primeira argolada.

A noite terminou com um cordial “até amanhã”, à porta da casa da avó, ali para os lados de São José.

Mais tarde, já não sei se por iniciativa dela ou minha, fomos ao Doors, o bar na Travessa 1.º de Maio. E aí ocorreu o incidente que selaria o destino da nossa breve amizade. Sentada num daqueles bancos altos de balcão, ela tentou mudar de assento sem tocar com os pés no chão. O banco resvalou. Caiu com estrondo.

Num reflexo patético e mal calculado, para proteger a situação do embaraço público, soltei uma gargalhada. Tentei trivializar o momento, mas ela magoara-se a sério no cóccix. Olhou-me, ferida no corpo e no orgulho:

— Então eu caio e tu ris-te?!

— Estava a rir-me da anedota… — murmurei, ridiculamente.

— Que anedota?!

Não tive coragem de responder: "Eu. A anedota sou eu."

Na verdade, queria apenas protegê-la do ridículo com um gesto de descompressão. Mas era tarde demais. Acompanhei-a depois, coxeando, pela rua inclinada que desce à Praça Luís de Camões. Do resto desse dia não guardo mais memória. Suponho que a levei a casa.

Meses ou anos mais tarde, numa noite de verão, vi-a entrar no Vagabundo, de braço dado com um estrangeiro de chapéu de cowboy. Sentaram-se exactamente em frente à minha mesa. Trocámos um breve sorriso. Depois vi-os beijarem-se, cúmplices e despreocupados.

Se fosse um tipo confiante teria pensado que aquele beijo era exibido propositadamente. Mas a minha baixa auto-estima, que sempre me impediu de sequer imaginar algo entre nós, não me deixou espaço para tais ilusões.

Nunca me achei particularmente bonito, nem charmoso. Era um jovem banal, algo gorducho e desajeitado. Nunca esperei ser desejado por alguém como ela — e, verdade seja dita, também nunca tentei sê-lo. A mediocridade em que me instalei servia de escudo. Melhor assim: nenhuma expectativa, nenhuma desilusão.

Já em 1984, cruzei-me com ela na cidade, acompanhada de uma amiga. Soube que tirara a carta de condução recentemente, mas não tinha carro. Ofereci-lhe o volante do meu Renault 5. Aceitou, surpreendida. Levámo-lo até à Meia Praia, atravessando a passagem de nível que tanto assustava a amiga no banco de trás. Ela hesitou. Incentivei-a a acelerar, a ultrapassar o obstáculo — mais simbólico que real. E passou.

No fim do passeio agradeceu-me a confiança e o encorajamento. Eu, na verdade, apenas queria redimir-me das palermices passadas. Atrevi-me a tentar suavizar a imagem do idiota que tinha sido.

Voltámos a cruzar-nos algumas vezes, no Jazz Club Navegador, em grupos de amigos. Já estava com o homem com quem viria a casar. Depois disso, passaram-se décadas. O último encontro deu-se por acaso, já ambos com família feita. Um simples “olá” na pastelaria Ruby, onde ela lanchava com os filhos.

Farrapos de memória, pedaços de tempo, como os de tantas vidas. E, no entanto, com o passar dos anos, tendemos a vestir os nossos erros com o manto do destino. “Era o que tinha de ser”, dizemos, para não enfrentarmos a realidade: as nossas falhas, a falta de coragem, a má leitura dos momentos.

Mas é nestas pequenas derrotas da juventude que a vida ensina.

Bem-aventurados os que nada disto sabem,
refastelados na ignorância das lições do mundo,
alheios ao que são, inconscientes do que fazem.
Esses são os príncipes dos felizes.


Epílogo

Hoje, 5 de Outubro de 2022, não entrei no mar no sítio habitual da Meia Praia por causa do cheiro nauseabundo das algas acumuladas. Fui banhar-me mais à frente, entre os restaurantes Berlim e Palmares.

Depois do banho e das fotografias rituais, regressava ao parque onde a minha Honda me esperava. Ao atravessar o passadiço, cruzei-me com ela.

Décadas tinham passado.

Foi um momento breve, mas cheio de uma alegria discreta — dessas que se alimentam da nostalgia. A vida, por vezes, tem um certo talento para o simbolismo.




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