Vivemos mergulhados numa sociedade de logros, equívocos e mentiras — eis o traço distintivo de qualquer colectivo humano que ultrapasse a escala possível da conversação e do confronto directo. Assim que se abandona o formato íntimo do clã ou da pequena Freguesia — dessas que ainda pulsam, aqui e ali, no interior do país — perde-se a tessitura ética da comunidade. Dissolve-se o sentido de responsabilidade individual; abandona-se a consciência cívica em troca da crença infantil de que o colectivo tudo absorve, tudo perdoa e tudo esquece.
Entra-se então na lógica do efémero e do descartável. A substância é substituída pela circunstância; o concreto dá lugar ao relativo; o real transforma-se em representação. E a ética — essa senhora austera — derrete-se no calor de um consumismo pueril, enquanto a moral se encolhe como veludo molhado à força das pulsões imediatas. A noção de bem comum cede lugar ao entretenimento do ego.
Veja-se a consciência ecológica, que tantas vezes se assume como caricatura de si mesma. Uma pantomina de boas intenções, encenada ao ritmo de hashtags e slogans. O ambientalismo, ao invés de prática consequente, torna-se adereço — gesto de ocasião, pró-forma narcisista de quem recicla o papel para poder viajar de avião sem culpa. Mas para quê recolher as beatas num cinzeiro portátil se é o próprio cinzeiro, em plástico fluorescente, que acaba abandonado no solo como monumento à estupidez reciclável?
Esta lógica não se restringe à ecologia. Espraia-se pelas mais diversas dimensões da vida comunitária, com gradações variáveis de gravidade e consequências. Desde o engajamento político em modo selfie, até à filantropia de gala com catering gourmet. Vivemos na era da forma sem conteúdo, da imagem sem substância, da encenação contínua da virtude. O Instagram é a nova consciência moral. A selfie de uma árvore é, para muitos, substituto suficiente da sua sombra.
E a verdade é que não há “Educação de berço” nem “formação para a cidadania” que consigam remediar isto. A derrocada civilizacional já não se anuncia — está em curso. Rasgam-se os alicerces do Humanismo, os pilares da Razão, os andaimes da Civilidade que tantos séculos levaram a construir. A ignorância transformou-se em orgulho e o sarcasmo vulgar em moeda de troca argumentativa. A gravidade do mundo mede-se em emojis.
O século XXI, mais do que uma nova era, parece um epitáfio: é a Idade da Desrazão, da Estagnação e da Deriva. Caminhamos para o Caos com ar de quem se dirige para um festival de verão. E, no meio desta encenação grotesca, alguém ainda ousa invocar a Esperança, como se fosse possível dar-lhe forma entre restos de ideologias recicladas e slogans de auto-ajuda? Bardamerda para a Esperança — essa última sobrevivente, apenas porque ninguém ainda a deu por morta. Mas a sua vitalidade é apenas ilusória. É uma espécie de holograma emocional: visível, mas inócua.
Pergunto-me, por vezes, se os povos estão condenados a viver sob tutela. Sob a mão invisível (ou visivelmente opressiva) de um “paizinho” protector, que lhes dite o que pensar, o que temer e o que desejar? Será a felicidade apenas um modo higiénico de subjugar?
Seremos, afinal, uma espécie incapaz de autogoverno? Um bicho nervoso, ansioso, irrequieto — sempre a confundir liberdade com capricho, e democracia com o direito a berrar em público? Terá chegado o momento de reconhecer que a democracia, tal como a concebemos, já não basta? Ou, pior, talvez nunca tenha bastado?
No fim, restam-nos as pseudo-coisas: simulacros, fantasias, pastiches da realidade. São suaves, polidas, confortáveis — e vitoriosas. Tomaram de assalto todos os pódios, ganharam todos os prémios de popularidade. E nós, pseudo-coisos que também nos tornámos, aplaudimos de pé, convencidos de que ainda estamos no comando.
Mal sabemos que já nem o comando da televisão nos obedece.
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