[publicado em CRÓNICAS DA PESTE, Abril 2022]
A porção de mar reproduzida na imagem situa-se no canto Oeste da Meia Praia,
limitada pelo molhe que protege a barra do rio. De resto o plano de água
apresenta-se livre, como integrante do oceano, e apenas separado do céu pela
linha imaginária do horizonte, aqui artificialmente sublinhada.
A luminosidade da superfície homogénea inferior confere-lhe a qualidade de
espelho, como uma superfície etérea que desmaterializa o meio líquido inferior
e mimetiza o nível superior, o céu.
Questiono se a imagem reflectida é efectivamente uma reprodução, uma
propriedade da imagem real ou se é outra coisa. Ou se é, como diz Lacan acerca
da criança que se vê ao espelho: uma imagem que “é dela” e ao mesmo tempo que
“não é dela”.
É certo que a paisagem não é um ser com consciência e, portanto, não é sujeito
nesta questão; e também é certo que o observador não é uma criança em estádio
de descoberta e formação da consciência sobre si própria; mas, o mundo das
imagens reproduzidas por meios artificiais ou reflectidas em superfícies
espelhadas são, frequentemente, manifestações ilusórias da realidade.
Tal como uma fotografia o é, na sua impossibilidade de resolver a
intencionalidade do momento e da perspectiva, na impossibilidade de discursar
dinamicamente o curso do tempo, na incapacidade da reprodução exacta das cores
e, no limite, na aberração na reprodução das formas, por via das alterações
cromáticas.
O que sobra, então? A palavra. A palavra valorizada na narrativa, essa forma
única de descrever o real e o imaginário.
Sherazade, para não morrer, narrava histórias ao sultão que, assim, a poupava,
confirmando que a narração é um dos modos de sobrevivência dos seres humanos.
E pelo menos desde Sherazade, narra-se para não se morrer, pois só a narrativa
subsiste mesmo após o silêncio dos narradores.
Já a imagem, na sua subjectividade discursiva e interpretativa não resolve essa
eterna discussão entre concreto e fictício.
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