Daquela Vila cubista


 

[publicado em CRÓNICAS DA PESTE, Abril 2022]


Lembro-me das portas coloridas em volta da casa do meu tio, na Rua de S. Sebastião e com porta das traseiras para o Beco do Cabanas. E lembro as passagens ocasionais pela zona onde nasci, na Rua Nova do Levante, e o largo fronteiro com a barbearia que tinha umas gaiolas com canários na ombreira da porta; e o bulício da fábrica Jacinto Ferreira (as fábricas trabalhavam aos sábados e, até, aos Domingos se houvesse peixe que o exigisse), e os camiões gigantescos da Feliz & Cruz - Transfec, estacionados no largo.

E a corrida pela Rua António Lopes, seguida da angular viragem rumo à Av. 5 de Outubro com entrada ofegante na tasca* situada exactamente à esquina, o João Raizinho, onde contava ganhar algum raio de polvo seco, assado, da pequena tertúlia que reunia o meu pai, Chico Alegria como era conhecido, a alguns amigos e colegas operários de outros tempos.

Daquela tasca recordo a esposa do João Raizinho, a Sra. Rosarinha, mas do grupo de amigos do meu pai não tenho tão boa memória, excepto do Barroca, homem muito alto que tinha trabalhado na fábrica com o meu pai, mas nem sei se essa recordação será sugestão e influência das fotografias em que ele aparece, miradas e remiradas ao longo dos tempos, fundindo-se com as memórias reais de um puto de 7 ou 8 anos.

São recordações de tempos que costumamos considerar como os melhores, esquecendo que é naquelas idades que acontecem as descobertas e os encantos da vida; até as papilas gustativas são mais eficazes e saboreiam tudo melhor do que hoje. E como não os podemos viver de novo, esses tempos da juventude serão sempre os melhores da nossa existência, momentos fugazes recordados com essa nostalgia que nos dizem identitária, a tal saudade, daqueles finais dos anos sessenta.
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* Contaram-me recentemente que aquela tasca ostentava o nome “O Sol quando nasce é para todos” numa placa existente sobre a porta, o que, antes de 1974, resultava em frequentes problemas com as autoridades, implicando a remoção da mesma, embora o proprietário voltasse a colocá-la mais tarde, alimentando uma disputa que, certamente, lhe traria repetidos prejuízos materiais e pessoais.

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