O polvo que sofria de amores


 

[publicado em CRÓNICAS DA PESTE, Abril 2022]

Já desde as civilizações antigas que o barco é considerado um ser vivo, um ente anímico e, portanto, tratado como tal pelos seus utilizadores. E para quem já testemunhou um entusiasta do automobilismo falando com o seu carro, tal coisa não pode estranhar.

Por esse motivo muitos barcos têm olhos, uns de forma humana, outros de formas geométricas: triângulos; losangos; estrelas; mas todos com idêntico significado.

O Olho de Hórus, udjat, proveniente da cultura pré-clássica egípcia espalha-se por todo o Mediterrâneo, chegando até aos confins da Península Ibérica pela mão dos fenícios que o adoptaram como representação de valores importantes: a força; a coragem; a protecção e a saúde.

É naquela parte a que os pescadores do centro e sul do país chamam cara do barco, situada na zona da proa, de um e outro lado do casco, que se fazem figurar esses olhos que ajudam a ver bem o caminho, encontrar os melhores pesqueiros e a regressar a bom porto, mesmo debaixo de nevoeiro ou tormenta.

E esse simbolismo apotropaico mimetiza o uso de talismãs ou amuletos entretanto quase caídos em desuso a bordo, como os chifres, as ferraduras, e as figas, com semelhantes atributos de que se destacam a protecção contra o mau-olhado e a má sorte.

Má sorte teve o polvo que se apaixonou pelo olho aberto pintado na cara da lancha de pesca não sabendo, porque não se espera que um polvo saiba destas coisas, que aquele olho protector de que a forma geral e a sobrancelha derivam do olho humano, e as linhas inferiores de um olho de falcão é, inclusive, um competente guia nos caminhos do além.

O que aquele infeliz Octopus vulgaris sabe é que sente um poderoso e magnético fascínio pelo olho que o mira impávido e altivo, mas que infelizmente não lhe fala, não lhe diz nada, não responde ao profundo e dramático sentimento que por ele nutre.

Tudo aconteceu quando, uns dias antes, o polvo saía de um buraco enrolando, num abraço mortal, uma esverdeada e rechonchuda navalheira (Necora puber) que não conseguira esquivar-se ao eficiente molusco. Andava a maré baixa e, no alto, entre a superfície das águas e o céu inalcançável, um enorme olho balouçava piscando-se para ele, polvo.

Foi avassalador. Largou a navalheira, que se esgueirou, aliviada, para o buraco mais próximo, e o polvo ficou especado, hipnotizado pelo enorme olho que o observava.

E os dias sucediam-se com o polvo aguardando a passagem do barco para, nas ocasiões em que o Rui por ali fundeava para lavar um xalavar de conchas de búzios, trepar pelo costado da lancha, segurando-se com dois raios dobrados na roda de proa, e os outros esparramados como uma estrela-do-mar, reservando um deles, mais sensível, para tocar suavemente aquela imagem que o trazia emotivamente perturbado.

Mas pouco depois deixava-se escorregar, decepcionado porque, assim, tão próximo, o olho olhava para longe não dando atenção à sua presença. Então submergia de novo, rumo à profundidade marinha de onde regressava a ilusão do olho virado para si, fenómeno que a refracção do elemento líquido potenciava. Porém, cego na sua paixão, isso não via ou não sabia. E também nada sabia das quimeras que são próprias das paixões, pelo que mantinha dia-após-dia aquela eterna esperança dos iludidos.

Sendo conhecedor dos segredos do mar, bem podia perceber tratar-se da oclusão intermitente, provocada pelas ondas no balouçar do barco, que fazia parecer piscar o olho. Mas estava siderado, embasbacado com a beleza daquele traço preciso e esbelto de um olho que o encarava intensamente. Poderia lá saber tratar-se da representação do órgão visual de uma divindade e, por esse motivo, toda aquela beleza surreal?!

Tampouco sabia o polvo quão próximo está o seu ser do simbolismo daquele olho que para além de protecção também evoca renovação, dois aspectos intimamente ligados à existência da sua espécie, plasmados nos cuidados que a fêmea dispensa à prole num extremismo maternal que a leva à morte por inanição, quando concluído o seu dever.

Inesperado seria que um simples polvo recuperasse do empoeirado e superficial uso folclórico, o simbolismo transcendental de um ícone tão antigo, dotando-o de nova dimensão ligada ao ciclo da vida e morte e à regeneração dos seres aquáticos.

Ainda hoje lá está o polvo, perto da Ponta da Piedade, agarrado a uma rocha que mal desponta fora de água na preia-mar, aguardando esperançosamente que o Rui passe com a lancha Senhora dos Aflitos e o seu olho sublinhado a rimmel numa perfeição divina.

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