Já não se ouve o parar das máquinas agrícolas, da bomba que
puxa água da ribeira, do moinho que tritura o grão; tampouco o arfar sincopado
da enxada que fere a terra na horta. Nem cessa o ruído alegre das crianças no
recreio da escola. Não se suspende temporariamente nenhuma dessas existências
para prestar homenagem a uma vida que cessou definitivamente.
Assim está a aldeia, vazia de tudo isso, vazia de gente. A que agora ali se
junta para acompanhar a octogenária à sua última morada, veio escoada dos
montes em redor. Algumas pessoas vieram de perto da Moita Redonda, a mais de
três horas de caminho a pé.
– Devem ter vindo de carro. Diz a irmã da que vai a enterrar, forasteira em São
Barnabé, porque apenas residiu uns quatorze ou quinze anos, os primeiros da
vida, na sua freguesia natal, mas lá na Moita Redonda, em plena Serra de Mú,
onde o Alentejo foi divido do Algarve.
A igrejinha enche-se de mulheres e alguns homens, embora a maioria, sobretudo
os mais idosos, permaneça na rua, à sombra do arvoredo que marca o limite da
estrada que entra na aldeia com os terrenos baixos de aluvião, que marginam a
ribeira. Assim é neste Alentejo de montes altaneiros que se sucedem, rodeando
São Barnabé, povoação embutida numa dessas depressões que a serra forma nas
suas descontinuidades, espaços em que o criador suspendeu o desenho da paisagem
ondulante, para respirar ou descansar da árdua tarefa de fazer o mundo.
O sino toca a rebate, mas nem esse som pungente que corta o silêncio da serra
atenua a calidez do astro-rei, a coisa imutável que conheci há 50 anos, que
assim sinto meio século depois. É esse calor abrasador e a luz intensa que
reverbera nas pedras expostas pelos cortes dos montes abertos para fazer
estradas, essa mesma luz que rebrilha nas folhas das estevas, que me fere os
sentidos.
Só essa potência solar é a mesma, imutável e inclemente à passagem do féretro
que vai a sepultar esperando a clemência divina no pesar das acções feitas em
vida, nessa contabilidade final do Deve e Haver que mede a conduta da passagem
de cada alma por este mundo físico.
Ao fim de 87 anos de vida vivida, conhecidamente sofrida, a tia Elisete deixa o
mundo das coisas sensíveis, que se tocam, e entrou no mundo sensível das coisas
que são essência e vibração do Universo. Regressou ao Uno.
Acompanho o passo e lembro a banha dentro da panela enorme, acabada de
derreter, onde, por acidente, enfiei uma perna para grande susto das duas
irmãs; a mãe a tia. Felizmente, a banha já estava morna. E do sabor daquele pão
denso, sem buracos padeiros de massa crua e balofa, que suportava um conduto de
chouriça vermelha, cilíndrica e matizada de carnes gordas e magras, saborosas.
Quando trincava a chouriça parecia que ainda ouvia o porco grunhir, em surdina,
com a corda enrolada na focinheira, deitado na banca e aguardando o ferro que o
separaria da vida e aproximaria dos presuntos e morcelas.
Recordei a limpeza da bexiga com cinza, do soprar para enchê-la e do resultante
sabor a futebol da serra que me ficava nos lábios, rematando finalmente a
bexiga com pontapés de alegria e alguns gritos para afastar os cães que não
percebiam a diferença entre uma bola de futebol improvisada e um petisco pronto
a mordiscar. Não se contentaram com os queixos do porcino, porque eram
demasiados cães.
E os mergulhos nos pegos da ribeira, de Odelouca, ali próximos da povoação, nas
tardes cálidas de Julho. E o clamor da festa local com a sua quermesse de
tabuleiros recheados de coisas para comer e decorados com folhas de palma, que
deambulavam pela rua como andores em procissão para que os interessados
pudessem atribuir o valor que iriam arrematar no leilão. E o barulho das
cornetas amplificadoras, que suplantava as risadas, os gritinhos e as conversas
da multidão e atestava a vida vibrante da aldeia.
E o pó das estradas, ainda estranhas de alcatrão, que entrava pelas frechas
desconhecidas do automóvel, durante a ida e o regresso daquelas vilegiaturas,
ou simples visitas, tudo isso recordei ontem à tarde, viajando décadas no
passado.
Lembranças interrompidas pelas conversas dos homens, ali perto, sobre a
desertificação das aldeias e dos povos, e dos montes, o abandono das
actividades campesinas e a sua substituição por enormes olivais e amendoais de
cultivo e produção intensa, onde raramente se vê algum humano escondido dentro
de maquinaria moderna e medonha. E as crianças que não nascem, e os poucos
jovens que foram crianças e depois partiram porque não querem ser adultos ali.
E os políticos, que são sempre o mesmo, eternos enganadores, manhosos e
incapazes.
A tia Elisete Maria foi a enterrar e ficou junto ao tio Manuel António, o seu
esposo, que há 16 anos a precedeu. Que descansem em Paz.
Eu continuarei a recordar os brados, os sorrisos, e o vento, aquele vento que
sopra na serra, sozinho, sem outros sons a acompanhar, diferente do coro que
ele enforma aqui no litoral, com as ondas do mar e as adriças dos veleiros a
bater nos mastros, sempre a bater.
.
«ALDEIA DE SÃO BARNABÉ
Está situada no fundo do vale, embora a lenda conte que populações antigas a
queriam fundada no alto do cerro, contra os interesses de um proprietário
abastado. A lenda mostra assim o confronto de culturas entre os antepassados
castrenses que viviam em locais altos e a colonização romana que preferia viver
nos vales férteis, junto aos rios e às vias comunicação. Foi a Ordem de
Santiago de Espada que a partir da reconquista cristã, colonizou este local
dando-lhe orago e uma vivência que se mantém até aos nossos dias.»
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