Pirolitos e Companhia



O meu amigo Tolentino veio visitar-me hoje e fez-me uma oferta; uma pintura de sua autoria, de 1994, alusiva à caça submarina, de que também foi um grande entusiasta. Logo que a vi comecei a rir porque me assaltou à memória um episódio ocorrido nessa actividade, seguido de outros também acontecidos entre finais dos anos 80 e inícios dos 90.

Era Verão, era noite e, incitado por um colega de trabalho, fomos mergulhar na Ponta da Piedade, em modo caça submarina. Era o meu terceiro ou quarto mergulho noctívago e ia equipado com todos os apetrechos do ritual.

A noite estava amena, tal como o mar e havia alguma claridade lunar reflectida na superfície vítrea que comportava estranhas partículas e seres em suspensão. À tona nadavam minúsculos lamelibrânquios de riscas coloridas, numa dança de contínuos e hipnotizantes estertores dignos da melhor coreografia de dança contemporânea, entre outras criaturas minúsculas, ou restos de seres marinhos, que flutuavam naquela fina película que estabelecia o limite entre os dois mundos, o aquático e o aéreo.

A noite decorria entre capturas, poucas, de espécies triviais quando, embrenhado na magia do mundo subaquático noturno deixei enrolar o dacron do arpão na alça da lanterna, que trazia devidamente enrolada no pulso direito, e, na ânsia de me desembaraçar da salsada, acabei por adicionar àquele enredo a mangueira de borracha que me ligava à boia que suportava o saco de rede das capturas. Estão a ver aqueles tubos de plástico que se usam nas motorizadas para levar o combustível do tanque ao carburador, e que também se usam nas bombas de ar dos aquários domésticos? Era uma mangueira desse tubo, com uns 3 metros de comprimento, que também entrou no maldito empeço.

Felizmente, encontrei ali perto uma rocha que se erguia da água uns 30 cm e onde me encostei para tentar desembaraçar o enredo criado, já irritado com os pirolitos inadvertidos, enquanto o meu camarada de pescaria me iluminava com a sua lanterna e ria desbragadamente da minha inaptidão de caçador submarino.

Uma outra peripécia noturna, ocorrida antes, na costa Oeste, também com este camarada, resultou num incidente que me deixou petrificado e sem pinga de sangue quando, ao levantar a cabeça vi aproximar-se uma onda gigantesca, com uns 100 metros de altura. Decorreram alguns segundos, que pareceram uma eternidade, até perceber que não estava a olhar para o mar, mas sim para o lado da terra e que a onda não era mais do que a arriba da praia onde estávamos a mergulhar, negra e recortada da ténue claridade lunar que mal iluminava o céu.

Esta inabilidade para as aventuras da caça submarina e a consequente ilusão da minha aptidão para recolecção subaquática de seres comestíveis iria terminar num dia de Sol radioso, em que mergulhando no molhe da Meia Praia, armado com uma espingarda e uma máquina fotográfica Nikonos V, por demorada indecisão entre disparar a espingarda ou a máquina fotográfica, deixei escapar um belíssimo choco pousado numa das pedras do molhe, exemplar que teria dado uma extraordinária foto, ou um delicioso grelhado.

Nunca mais mergulhei equipado com as duas antagónicas ferramentas e parece-me que foi a última vez que mergulhei com a espingarda. A máquina ainda haveria de ser usada numa reportagem de limpeza subaquática em que os activistas mergulhavam em apneia e, eu, o repórter, mergulhava com garrafa de ar comprimido. Da epopeia ficaram meia dúzia de fotos registadas no fundo, a uns parcos 3 ou 4 metros, já que à superfície, a decisão de prescindir do ar comprimido e usar apenas o snorkel se revelou desastrosa. Lastrado, dificilmente mantinha o tubo fora de água, e os pirolitos sucederam-se impedindo o registo de fotos aceitáveis.

E assim decorreu a minha curta história trágico-subaquática, de pirolito em pirolito até ao pirolito final; memórias recordadas pela simpática oferta do Tolentino de Lagos, que aqui reproduzo. 

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