“Click!” – ou a Ilusão da Verdade em Pose


Há quem diga que uma imagem vale mais do que mil palavras. É o tipo de frase que se repete com a solenidade de uma verdade ancestral, quando na verdade não passa de um aforismo preguiçoso, criado por um publicitário americano no início do século vinte, mas que bem podia ter sido criado por algum fotógrafo ressentido que, cansado de explicar o vazio das suas composições, decidiu investir na tirania do instantâneo como quem impõe um dogma ao mundo. Vivemos hoje sob a ditadura do Click. Tudo é imagem: rostos esticados, sorrisos de conveniência, pores-do-sol com filtros, crianças que fingem inocência para as redes, e uma humanidade que se retrata incessantemente sem nunca se ver de verdade.

O fotógrafo moderno – essa figura em pose permanente – julga-se um demiurgo da memória, um regente de luz e sombra que molda o real ao serviço do belo. Não raro, entre os círculos onde se fala baixo e se segura o copo de vinho com três dedos, proclama-se que a fotografia é arte, é denúncia, é consciência. Ah, como se a consciência pudesse ser comprimida num formato jpeg! E quanto à denúncia, valha-nos o Poderoso: há mais desgraças documentadas em alta resolução do que revoluções feitas com palavras.

A palavra, essa sim, é matéria nobre. Exige tempo, exige pensamento, exige silêncio antes de nascer. Já a imagem, sobretudo na era digital, nasce no automatismo do reflexo e morre na velocidade do scroll. A oralidade constrói pontes, a escrita funda civilizações, mas a fotografia… a fotografia entretém. É o açúcar visual que disfarça a fome de sentido.

A fotografia, dizem os seus apóstolos, educa. Ensina a ver o mundo. Ora, ensina, sim, mas a ver o mundo como um catálogo: as misérias são estéticas, as guerras têm boa composição, os pobres ganham dignidade quando bem iluminados. Ensina-nos, sobretudo, a ser espectadores profissionais da dor alheia e turistas da beleza artificial. Enquanto a palavra nos convida à partilha, à dúvida e ao confronto, a imagem congela-nos num eterno “olha que bonito”. E assim, em vez de pensarmos, reagimos. Em vez de lermos, deslizamos. Em vez de ouvirmos, clicamos.

O fotógrafo, tal como o conhecemos hoje, é um sacerdote do efémero. Captura momentos como quem embalsama o tempo, mas esquece-se de que o tempo não se respeita: vive-se. A fotografia é, no fundo, o elogio do simulacro. E nesta sociedade que já não distingue o essencial do superficial, onde se confunde o retrato com a verdade e o filtro com a sinceridade, a imagem triunfa sobre a essência como um bufão que toma o trono após envenenar o rei.

E enquanto isso, o Verbo – aquele com maiúscula, o que se fez carne e depois livro – vai sendo substituído por pixels, likes e legendas que dizem menos do que o silêncio. Pergunto-me se, no juízo final, os homens não serão julgados pelo que disseram e escreveram, mas antes pelas fotografias que publicaram. Se assim for, que O Grande Arquitecto tenha piedade de mim e de todos os outros que usaram flash.

Click! Mais um instante roubado à eternidade. Mais uma mentira disfarçada de documento. Mais uma alma perdida na galeria dos que confundem o visível com o verdadeiro. Só na minha fototeca privada tenho 186.210 fotos digitais. Não contabilizo, portanto, as que, de minha autoria, existem na Fototeca Municipal nem as não digitais, privadas e municipais.

Eis uma ocupação de natureza superficial, decorativa, histriónica e auto-enganadora que revela uma forma de pensamento ornamental, mais preocupada com o reflexo do que com a fonte da luz; um desvio estético-moral que prefere o verniz ao vigor, o aparente ao autêntico, o visível ao verdadeiro. Uma exaltação da forma sem substância que é, enfim, uma idolatria moderna: esteticamente sedutora, mas ontologicamente vazia.

Quando os fotógrafos – amadores, profissionais, e demais praticantes da seita do click – se apresentarem perante Osíris no seu julgamento final, não será com os corações pesados que se preocuparão, mas sim com os cartões de memória cheios de disparates visuais. 

Primeiro, Maât pesar-lhes-á a alma não contra a pluma da verdade, mas contra um powerbank descarregado: símbolo da sua dependência patológica da tecnologia. E ai daquele cuja alma pese mais do que uma selfie tirada com pau extensível diante de um campo de refugiados. 

Depois, virá a exibição do seu portfolio – não com música angelical, mas com uma apresentação automática em slideshow, onde cada imagem será acompanhada por uma gargalhada dos deuses, que não entenderão por que motivo alguém fotografaria 97 versões do mesmo pôr-do-sol com ligeiras variações de filtro. 

A seguir, o defunto será condenado a sentar-se numa nuvem desconfortável e rever, uma a uma, todas as fotografias de comida que alguma vez tirou – em especial aquelas onde a refeição arrefeceu por esperar a iluminação perfeita. Por cada fotografia de brunch partilhada com legendas do tipo “gratidão” ou “momento perfeito”, será obrigado a ouvir um discurso de três horas de Platão sobre a diferença entre a aparência e o ser. 

E para os mais vaidosos, aqueles que se retratavam obsessivamente em poses estudadas com ar de profunda espontaneidade, haverá castigos personalizados: passar a eternidade a tentar tirar uma fotografia ao próprio reflexo sem que a alma fique embaciada.

Quanto aos chamados “fotógrafos de causas” – que documentavam a miséria humana com lentes de mil euros e sapatos italianos – esses terão de justificar perante Osíris por que razão havia sempre um filtro sépia sobre a fome, mas nunca sobre o seu próprio guarda-roupa. 

Por fim, os que ousaram chamar “projecto artístico” a uma série de fotografias de portas antigas, janelas em ruínas ou pés descalços na areia, serão enviados directamente para o Inferno dos Banais: uma sala onde só se projectam slides de casamentos e baptizados, sem escape nem botão de avanço. 

E assim se fará justiça divina, com foco automático. 

Click! Click! Click! Click! Click!

  

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