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Não sei bem como surgem as ideias, como
nascem, se desenvolvem, ganham forma e se moldam em contos, crónicas ou coisas
de maior fôlego. Sei apenas que, por vezes, basta uma palavra solta ou uma
memória antiga para me impelir à escrita. Foi o caso da lembrança do Barbosa,
que vinha de Barão no seu Mercedes verde para as aulas nocturnas, nos anos 80.
Trocámos apenas algumas palavras de circunstância nos intervalos, nada de
memorável à superfície. E, no entanto, a sua doença singular e o seu
desaparecimento repentino deixaram marca em mim — e, há instantes, quarenta e
tal anos depois, despertaram-me o engenho. É disto que falo. Ficcionado,
naturalmente. Mas enraizado naquilo que permanece, sem saber porquê.
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Havia nascido com progéria, doença
também conhecida como síndrome de Hutchinson-Gilford. Trata-se de uma mutação
genética ao nível do núcleo celular, cujos portadores apresentam, nos primeiros
anos de vida, um crescimento retardado, perda de gordura subcutânea, queda de
cabelo, rigidez articular e uma aparência envelhecida. O desenvolvimento da
doença implica, normalmente, padecimentos próprios da velhice, como
arteriosclerose, osteoporose e complicações cardiovasculares.
Mas, para toda a comunidade, o Baltazar era uma pessoa especial. Aos vinte anos de idade, e embora parecesse um homem no declínio da vida, era estimado por todos. Desde tenra idade que os pais correram as melhores clínicas médicas do mundo, que a sua situação económica abastada permitia, porém sem sucesso.
Havia quem amaldiçoasse a sorte, o desígnio da vida, ou mesmo Deus, por maltratar assim uma pessoa tão boa, de quem nunca se conheceu um acto de maldade, uma atitude pérfida, uma postura egoísta. Pelo contrário, os seus amigos e vizinhos sempre tiveram nele um apoio generoso, porque sabia ouvir os outros – nunca pensaram que a doença que o minava e já lhe dificultava o falar apenas lhe deixava o ouvir como forma de relacionamento com o mundo – e porque, tendo posses, repetidamente ajudava materialmente aqueles que, pelas mais variadas vicissitudes da vida, se encontravam em necessidades e grandes apuros.
Ora, como podia ele ser um indivíduo ruim se não tinha tempo, nem motivo, tampouco o ânimo necessário para isso? Se não tivesse aquela doença, seria, certamente, como os demais, com uns momentos de benevolência e outros de insolência, senão mesmo impiedosos, como qualquer indivíduo normal, que não pode ser totalmente bom durante todo o tempo, mas que também não é infinitamente, totalmente mau.
Nas últimas semanas, Baltazar passava os dias junto à janela da casa, voltada a poente. A cadeira de vime mal rangia com o seu peso leve, de corpo cansado e espírito desperto. Os ruídos da casa chegavam-lhe distantes, como se a vida fosse já um rio correndo ao largo de si. E então pensava. Pensava muito.
«Será que todos envelhecem por dentro como eu? Ou será que apenas adormecem, passo a passo, sem notar o que se vai perdendo? Eu tive o tempo condensado num sopro — mas acho que vi mais do que muitos que se arrastam pela existência como sombras em busca de forma.»
Lembrava-se das crianças da aldeia, com quem brincara, sempre com um certo pudor no olhar, como se receassem quebrá-lo. E, no entanto, ele sorria-lhes sempre com doçura, como quem conhece já a fragilidade das coisas e não se incomoda.
«A minha doença foi o meu espelho. Mostrou-me a decadência que os outros ignoram ou só pressentem com receio. E porque vi tão cedo o fim, aprendi o valor do instante. A eternidade não está nos anos, mas no modo como os vivemos.»
À noite, pedia à mãe que lhe lesse. O som da sua voz era-lhe mais precioso que qualquer tratamento: era a lembrança da infância e o consolo dos dias. Por vezes, fechava os olhos e imaginava que caminhava sozinho por uma estrada de pedra antiga, sob árvores altas. O silêncio ali não era ausência, era plenitude.
«Sinto que o meu corpo se vai apagando como uma vela em fim de cera. Mas não temo a morte. Temo, isso sim, que os outros não compreendam que viver pouco não é viver menos. Porque eu amei. E fui amado. E isso, creio, basta.»
Na manhã do dia 19 de Outubro, o céu parecia lavado de todas as sombras, como se a luz soubesse de antemão o que se preparava. Baltazar, sentado na sua velha cadeira de vime, olhava os montes ao longe, coroados de névoa clara. Respirava com esforço, mas sem angústia, como quem, enfim, aceita a hora marcada com a quietude dos justos. A sua mãe, que o velava em silêncio, notou-lhe nos olhos um brilho diferente — não de agonia, mas de um entendimento que escapa aos sãos e aos impacientes.
Antes de fechar os olhos pela última vez, murmurou algo que só a mãe ouviu: — O tempo foi breve… mas foi inteiro.
E então partiu, com a serenidade que
tantas vezes oferecera aos outros.
O rosto enrugado, já desprovido de sofrimento, ficara com uma expressão leve, quase sorridente, como quem, cansado do mundo, encontra finalmente repouso numa realidade sem dor.
Na aldeia, baixaram-se as vozes e
abrandaram-se os passos. Não havia escândalo na sua morte, apenas uma comoção serena,
como a brisa que passa entre os ciprestes. E muitos, nesse dia, ao olharem para
o céu limpo, pensaram que a vida, mesmo breve, quando vivida com bondade e
lucidez, pode ser mais longa do que os anos podem contar.
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