Infâncias de Sal e Sol

 


Foi por volta de 1970 ou 1971 que as brincadeiras tribais que animavam o rossio de S. João — hoje ocupado pelo Mercado de Levante e pelo parque de estacionamento de autocarros — e os Montes da Areia — actualmente convertidos em parque de estacionamento intra-muros ao serviço do Hotel Tivoli — migraram para a estrada da estação, naquele talude onde jaziam varados barcos de porte, gasolinas sobretudo, à espera da decomposição que a sua inactividade prenunciava. Haviam sulcado, vezes sem conta, as águas do Atlântico, respondendo à chamada das traineiras que os abasteciam de sardinha, transportada depois à lota, ou dedicando-se à faina com armadilhas ou à arte do rapa, com uma pequena rede de cerco que garantia o sustento económico necessário à sobrevivência das famílias dos marítimos que, noite após noite, se lançavam ao mar — escuro, frio, por vezes tempestuoso.

Era nesses barcos, encalhados na rampa da estrada para a estação dos caminhos-de-ferro, que nos perdíamos nas horas e nas marés da imaginação, em brincadeiras de piratas, ou de intrépidos marinheiros que cruzavam oceanos em busca de terras incógnitas, ou ainda na reencenação do último filme de batalhas navais, onde o porão servia de submarino, com escotilha indispensável, aberta ao esforço para revelar um mundo ofuscantemente luminoso nas manhãs de estio.

Não faltavam as falas do Errol Flynn, colhidas na penumbra do cinema, nem a simulação das pastilhas milagrosas que tornavam potável a água estagnada dos cenários de guerra nas selvas do Pacífico. Tudo era mimeticamente reproduzido de memória — uma memória volátil, permeável à fantasia do momento. E a imaginação, essa, era lei. Valia tudo para nós, putos.

De quando em quando surgia o encarregado do estaleiro a gritar-nos que nos puséssemos ao largo, mais receoso de que nos feríssemos do que preocupado com actos de vandalismo sobre embarcações já estropiadas e decadentes. Fugíamos, então, abandonando os navios como se atingidos por torpedos inimigos e prestes a soçobrar.

Entre as emoções que se agitavam e os acesos debates sobre o enredo ficcional — a que dávamos realidade quase palpável — o tempo esvaía-se. E a recolha à base naval, para o almoço, era precedida por vigoroso raspanete do almirantado matriarcal, já depois de várias e infrutíferas sirenes vocais lançadas ao vento.

A estes episódios juntavam-se outros de verdadeira navegação, em que três ou quatro aprendizes de grumete se aventuravam a remar com tábuas numa caixa de madeira — presumível coco de alguma embarcação de pequeno porte que ali aportara.

Nessa frágil arca de 1,7 por 1 metro, navegávamos entre a Solaria e os Estudantes. Numa dessas odisseias, três marinheiros improvisados lograram levar a inusitada embarcação até uma das enseadas de nudismo nas cercanias da Ponta da Piedade.

Foi, sem dúvida, uma aventura escaldante sob o Sol inclemente do Verão, numa piroga cuja borda mal se erguia um palmo acima da água. Quando encalhámos no pequeno areal, encalhámos também o olhar numa estrangeira, trintona e bem-apessoada — talvez nórdica, talvez loira — que se bronzeava sem os constrangimentos do biquíni. Deitámo-nos ali, a prudente distância, mas suficientemente perto para reter em retina os pormenores da paisagem — natural, sim, mas também iniciática.

Por fim, incapazes de conter o murmúrio e o riso que a beleza da Costa d’Oiro, humana e telúrica, inspirava, demos por nós descobertos. A ninfa, irritada, ergueu-se e retirou-se. Esses parcos minutos condensaram o espírito dos Descobrimentos: ao maravilhamento da revelação seguia-se a frustração do desencontro com os indígenas. Como no século XV.

A travessia de regresso foi dura. A aragem de Norte crescera e ameaçava engolir-nos com caixote e tudo. Remámos com denodo, entre vagas de apreensão, até lograrmos, enfim, evitar que a nossa epopeia juvenil fosse incluída na História Trágico-Marítima do senhor Bernardo Gomes de Brito.

Tenho vaga lembrança de um raspanete e de uma advertência aplicados por um cabo-de-mar à chegada à Solaria. Ora, não era essa atitude digna da terra de marinheiros! Fosse o Infante D. Henrique ainda vivo, e ter-nos-ia coberto de louvores pela ousadia e destreza nas lides náuticas. Talvez nos armasse cavaleiros... ou almirantes — quem sabe?

 


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