A azeitona, essa criatura marafada


O português – e mais ainda o algarvio — tem uma relação com a comida que roça o sagrado, o terapêutico e o desportivo, de nível olímpico. Dizer que se vive para comer talvez seja exagero, mas só ligeiramente. Na verdade, em muitas casas, a pergunta “o que é o jantar?” é a frase que ecoa e atinge mais decibéis, logo de manhã, quando ainda há resquícios de café nos beiços e o pão com manteiga acabou de deslizar pela goela. A gastronomia, entre nós, não é só alimentação: é identidade, é consolo e, sobretudo, é desculpa para juntar gente.

 

Em Portugal, e particularmente no Algarve, comer é coisa séria. Uma mesa posta é mais do que pratos e talheres — é altar de convivência. No Norte, podem discutir política à mesa; no Centro, contar anedotas de padres e comadres; mas no Sul, e com especial fervor no Algarve, o convívio roda sempre à volta do tachinho, preferencialmente com tempo, coisa que, infelizmente, vai escasseando. Comer à pressa é falta de educação, e recusar comida é quase crime de lesa-pátria. Se alguém disser "só quero uma sopinha", é porque está doente.

 

Com um Sol que parece ter feito pacto com os deuses do azeite e da sardinha, o algarvio aprende cedo que o tempo bom é para estar à mesa, mas ao ar livre. Daí os quintais com mesas de pedra, os terraços com churrasqueiras e os vizinhos que aparecem "só para dar um salto", mas saem empanturrados de chouriça assada, carapaus alimados e uns copos de néctar da adega local rematados por dois calcinhos de medronho camuflados por um café pretexto.

 

Cada prato é quase uma senha de entrada para o clube secreto da portugalidade. Quem nunca se emocionou perante um arroz de polvo, uma feijoada à transmontana, ou uma caldeirada à algarvia devia ser sujeito a prova oral antes de receber o Cartão de Cidadão. E que dizer do xerém de conquilhas, esse milagre de milho e marisco que só um povo de génio culinário podia inventar?

 

E não nos esqueçamos da cataplana, que além de prato é tecnologia avançada, espécie de disco voador – um OVNI, sim –, culinário onde o mar se funde com o porco e a cebola com o vinho branco. Comer cataplana é tão ritualístico quanto um concerto de Verdi — mas com mais molho. Já o Dom Rodrigo, esse doce conventual de fios de ovos com amêndoa e açúcar, não é sobremesa: é hino nacional embrulhado em prata laminada.

 

Grande parte deste culto gastronómico vem também da saudade: da infância, da aldeia, da mãe, da tia Arminda que fazia papas de milho com berbigão e contava histórias antigas. A comida é a cápsula do tempo do português — uma forma de guardar, no palato, aquilo que já não cabe na memória.

 

O algarvio é particularmente devoto da mesa porque sabe que o mundo inteiro quer cá vir comer — ainda que venha em sandálias e de meias. O arroz de lingueirão, a moreia frita, as conquilhas à algarvia, o atum de cebolada... são mais do que iguarias: são arte popular e estratégia de diplomacia internacional. Por isso, quando um algarvio convida para jantar, não se trata apenas de uma refeição — é uma demonstração de afecto, de orgulho e, por vezes, de resistência à dieta.

 

Se os portugueses adoram comer, os algarvios fazem disso uma ciência afectiva. Sentam-se à mesa não só para matar a fome, mas para acalmar o espírito, reforçar amizades e resolver (ou esquecer) problemas. Com humor, vinho e dois dedos de conversa — esse terceiro prato sempre presente — vivem os seus dias entre tachos, grelhas, travessas e o som reconfortante de uma colher a raspar o fundo da panela.

 

Recordo um almoço de domingo na casa do tio Ernesto, um homem que levava a gastronomia tão a sério como a pontualidade no futebol — ou seja, muito. A mesa estava composta com tudo o que manda o figurino algarvio: pão caseiro, queijo de cabra curado, chouriça assada a estalar e uma travessa de salada de polvo que já fazia salivar o primo Arnaldo só de olhar.

 

No centro, como trono de um pequeno império, repousava uma jardineira de javali, cuja receita o tio Ernesto dizia ter sido passada por um monge beneditino fugitivo e ligeiramente ébrio que se fora acolher ali para as bandas de Bensafrim. — “Ninguém toca no javali antes de provar a salada de polvo!” — decretou o anfitrião, com a autoridade de quem já organizou três almoços de casamento e sobreviveu a todos.

 

A família obedeceu. Cada um serviu-se da salada com reverência, excepto a tia Lurdes, que, com as unhas recém-pintadas e uma fé inabalável na dieta mediterrânica, resolveu comer apenas uma azeitona e logo decidiu espetá-la usando um palito.

 

Foi então que sucedeu a tragédia. A azeitona, demasiado oleosa e aparentemente dotada de espírito livre, escapou-se-lhe do palito com um salto digno de uma atleta olímpica, descreveu uma parábola perfeita sobre o tacho do javali e… penetrou no decote da prima Vanessa Maria, que, naquele preciso momento, se servia de vinho, inclinada com toda a inocência do mundo.

 

O grito foi agudo, o susto geral, e o vinho tinto voou em arco, baptizando o padrinho Gilberto e pintando o guardanapo de linho da avó Odete com tons de tragédia. — “Azeitona maldita!” — exclamou a tia Lurdes, com o palito ainda em riste. A prima Vanessa sacudiu-se, o tio Ernesto suspirou com pesar pelo líquido perdido, e o primo Arnaldo aproveitou a confusão para servir-se discretamente da jardineira de javali, repetindo mentalmente a sua filosofia de vida: “quem hesita, morre de fome”. No fim, a família riu-se tanto que quase esqueceram o drama da azeitona acrobata. Quase.

 

Desde então, em cada almoço de família, há sempre alguém que, antes de começar, olha em volta e pergunta: — “Há azeitonas hoje? É só para saber onde me sento…”

 

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