Koniec


Hoje faz cinco anos que tudo acabou. Cinco longos anos em que venho cultivando o fracasso com a dedicação de um jardineiro japonês a podar bonsais. Tento perceber que erro cometi — se foi o respirar demasiado alto, o servir o bacalhau sem azeite virgem ou o imperdoável pecado de ter opinião própria. Sei apenas que não fui tudo aquilo que ele sempre quis: uma sombra dócil, silenciosa e com talento para passar camisas.

Vivo incompleta, dizem-me. Como se a falta de um homem que confundia afecto com controlo fosse comparável à amputação de um pulmão. Faltava-me o ar, sim, mas era por excesso dele — do dele, entenda-se, com as suas sentenças definitivas e suspiros longos de mártir não compreendido.

 

Apaixonei-me por um homem de ferro. Não daqueles bonitos, forjados à mão, com scrolls art nouveau. Não. Este era ferro de vergalhão, tosco, oxidado e por vezes cortante. Frio, arrogante, e convencido de que a sua simples presença bastava para iluminar qualquer sala — mesmo as que ele próprio escurecia com a sua empáfia de paróquia.

 

Mas dele eu vi mais. Vi o menino ferido por trás do ditador doméstico. Vi o riso fugaz que aparecia entre dois juízos de valor. Vi também a obsessão pelo controlo, a aversão ao contraditório e a arte de sair de uma discussão com um “faz como quiseres” que significava exactamente o contrário.

 

Recordo com uma certa ternura os nossos pequenos rituais conjugais: ele a explicar-me pela enésima vez como se fecha correctamente um armário; eu a tentar não espetar-lhe com o armário pela cabeça. Ou aquele domingo em que fiz panquecas e ele disse, com os olhos semi-cerrados: “Estavam boas, mas a massa podia estar menos líquida”. Que bênção, um paladar tão refinado num homem que achava que hortelã era “erva que enfeita”.

 

Sim, hoje faz cinco anos que tudo acabou. Que benção disfarçada. Ainda me lembro do som da porta a bater — com o mesmo estrondo de um sino a anunciar liberdade.

 

Cinco anos. Cento e oitenta e dois mil e quinhentas horas de liberdade condicional. Digo “condicional” porque, volta e meia, sou surpreendida por recordações invasoras, como aquela do dia em que ele me levou flores — murchas, claro, mas era o gesto que contava. O gesto de ir ao talho, comprar carne e, já que lá estava, trazer-me um molho de salsa porque achou “bonito”.

 

Tivemos uma vida a dois exemplar. No sentido em que exemplifica exactamente tudo aquilo que deve ser evitado. Dividíamos tarefas com rigor: eu cozinhava, limpava, passava e ainda sorria; ele descansava da sua intensa jornada de crítica construtiva. Nunca se esqueceu de me lembrar, com nobre constância, que estava ali para “ajudar”. Um verdadeiro mártir doméstico, capaz de abrir uma gaveta sozinho sem colapsar de exaustão emocional.

 

Ele dizia que eu era demasiado sensível, só porque me incomodava o facto de ele falar comigo como se eu fosse a funcionária de uma repartição pública a quem ele estivesse a reclamar um carimbo. “Não é nada pessoal”, dizia ele, enquanto criticava a forma como eu respirava — “Sempre a suspirar, como se estivesses num romance de cordel.”

 

Mas houve momentos felizes, claro. Momentos em que ríamos juntos, especialmente quando eu cometia algum lapso culinário e ele fazia aquele ar de chefe Michelin ofendido: “Disseste que isto era risotto? Está mais para arroz de castigo.” Era um mestre da ironia, só que sem graça. Ou talvez fosse humor britânico de tão seco. Seco e abrasivo, como uma lixa de madeira de grau 40.

 

A nossa intimidade era igualmente edificante. Um bailado erótico de rotina e pragmatismo, onde cada gesto parecia precedido de uma reunião prévia com acta assinada. Tinha todo o ardor de um protocolo notarial. Às vezes perguntava-me se não seria eu o problema — se calhar não tinha alma de secretária protocolar.

 

Lembro-me da nossa primeira viagem: três dias em Lisboa, dois deles passados a discutir se a esplanada tinha demasiada corrente de ar. Ele queria conforto. Eu queria atirar-me ao Tejo. Acabámos num hotel sem vista, mas com televisão por cabo, onde ele viu dois jogos de futebol e um documentário sobre pontes — “Sabes, há muito a aprender com a engenharia”. De facto, especialmente sobre como manter estruturas que, em condições normais, já teriam ruído.

 

Hoje olho para trás e pergunto-me: que parte de mim achou que aquele homem era uma boa ideia? Talvez tenha sido o cabelo bem penteado, ou o modo como dizia “obviamente” antes de cada frase, como se fosse um oráculo. Ou talvez tenha sido a minha própria miopia emocional — um grau considerável de esperança misturado com excesso de literatura romântica mal digerida.

 

E, apesar de tudo, agradeço-lhe. Ensinou-me o valor do silêncio, da leitura a sós e da sesta sem sermão. E sobretudo ensinou-me que há coisas piores do que a solidão: por exemplo, dividir uma cama com alguém que acredita que o seu ressonar é sinal de virilidade.

 

Sim, hoje faz cinco anos que tudo acabou. E nem uma única estátua me foi erguida em comemoração. Mas eu sigo. Insegura? Talvez. Mas garanto-vos que tanto ele como o edil — que não me erigiu uma estátua —, o Director das Finanças — que me esfola todos os meses —, o carteiro — que me deita a correspondência no quintal da vizinha —, e o meu delegado sindical — que me intruja permanentemente e come à mesa do patrão —, todos eles serão eliminados. Vou matá-los um por um, ou não me chame Vanda. Eis, meus amigos, uma forma sublime de renascimento..

 

KONIEC

(como no final dos filmes apresentados por Vasco Granja no Cinema de Animação entre 1974 e 1990)

 

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[Tanto quanto me recordo, é a primeira vez que escrevo no feminino — excluindo o conto Claustro Fobias, no qual narrei episódios da vida de uma freira; mas, nesse caso, tratava-se de um narrador externo, e não de um discurso na primeira pessoa.]

 

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