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de Agosto de 1385. Lá estávamos, modesto escriba e cronista de nome pouco
conhecido, incumbidos da nobre e ingrata tarefa de registar para a posteridade
os feitos de uma batalha que prometia ser mais barulhenta do que os músicos de
rua nas cidades do Algarve. As autoridades haviam-nos escolhido com base num
critério rigorosíssimo: erámos o único que sabia escrever sem manchar o
pergaminho com molho à espanhola. Também ajudou o facto de a máquina
fotográfica ainda estar a seis séculos de ser inventada e, sejamos francos,
ninguém queria um retratista a óleo em campo de batalha. Os cavaleiros não
aguentam tanto tempo em pose sem matar alguém.
A
planície de Aljubarrota fervia, não só de sol, mas de nervos, e exalava dela um
cheirinho a guerra e a intenso odor corporal proveniente do interior das
armaduras de lata. D. João, Mestre de Avis e recém-proclamado Rei de Portugal,
de semblante sério, ajeitava o elmo com a paciência de quem sabe que dali a
instantes vai ter de provar que é mais do que um bastardo; é um bastardo com
jeito para espadeirar franceses, espanhóis e outros mais.
Do
outro lado, D. João de Castela bufava de confiança. Trazia consigo um exército
que parecia mais uma convenção medieval: cavaleiros, alabardeiros, clérigos, alguns
pasteleiros, três estandartes e uns franceses de cabelos armados que juravam
que aquilo se resolvia com um empurrão e um bom vinho da Borgonha.
Ao
lado do nosso João português, o Condestável Nuno Álvares Pereira fazia as
últimas afinações na táctica de combate, traçada com a minúcia de quem monta
castelos de areia com esquadro e compasso. O plano era simples: escolher bem o
terreno, escavar trincheiras, fincar estacas, polir todos os calhaus e fazer
com que os castelhanos, sedentos de glória, tropeçassem e escorregassem em tudo
aquilo como turistas em calçada portuguesa.
“Mestre,
não seria melhor esperar por reforços? Perguntou um escudeiro nervoso, olhando
o exército adversário, que parecia mais uma procissão com armaduras reluzentes.”
“Reforços?
Meu rapaz, nós temos os besteiros
do Porto e de Lisboa, homens de vista certeira, dedo nervoso e uma paciência
limitada para nobres arrogantes. E além disso temos os turistas ingleses
recém-chegados do Algarve, aqueles que ali vez com
as sobrancelhas levantadas e escaldões no rosto.”
Depois
de escutado este diálogo entre o Condestável e o escudeiro Azeite, instalámo-nos
num modesto outeiro, com bom ângulo para ver tudo e, mais importante, bastante
afastados para evitar levar com uma flecha perdida. Ali, com pena e tinteiro, e
um odre de vinho que fomos dizendo ser “água para diluir a tinta”, preparámo-nos
para registar o que viria a ser o dia mais atribulado desde que nos pediram
para redigir o rol de ofensas do arcebispo de Braga.
A
batalha começou ao meio-dia e durou menos do que uma missa breve. Os
castelhanos, confiantes, lançaram-se como se fossem conquistar o Eldorado colombiano, mas acabaram enterrados até aos joelhos
nas armadilhas lusas. Os franceses, elegantemente vestidos, diga-se, caíram em
fila como quem tropeça na própria etiqueta.
Mas
a grande surpresa para os invasores veio sob a forma de um contingente
disciplinado de homens de tez pálida, estranhamente queimada, e pronúncia
exótica: Sir John Holland, que vinha com recomendação directa do primo Ricardo
II de Inglaterra (um rei com tempo livre e pouca utilidade bélica), desceu da
mula com o ar de quem já tinha lido o guião. Alinhou os seus homens numa encosta
suave, preparou os arcos longos, verdadeiras máquinas de distribuir estropícios,
e gritou com aquele charme britânico: “Loose!”
Os
archeiros ingleses, alinhados com a precisão de quem joga xadrez, soltaram as
setas, e junto com elas o caos e a desordem nas hostes inimigas. As flechas iam
em enxames tão cerrados que os cavaleiros de Castela pensaram estar sob um
ataque de abelhas de ferro. Um cavalo de nobre francês (chamava-se Philibert, o
cavalo, não o nobre), recusou-se terminantemente a avançar. Sentou-se, ali
mesmo. Um historiador tentaria mais tarde explicar isso como "manobra
defensiva equina voluntária". Foi, na realidade, puro bom senso.
Já
os besteiros portugueses,
com as suas bestas de
madeira bem oleada e músculos que fariam corar qualquer ginasta moderno,
tratavam de tudo o que se mexia: cavaleiros, estandartes, copeiros distraídos;
ninguém escapava ao virote luso. Um besteiro do Porto acertou num francês em
pleno recuo, a 300 passos, enquanto comia uma francesinha. A crónica oficial
omitiu a francesinha, mas nós estávamos lá e testemunhamos a verdade. Um outro,
juramos por Santiago, acertou num francês que mal tinha saído da tenda. O pobre
homem ainda levava o guardanapo ao pescoço. Registámos isso com nota: “Morreu
em elegante despreparo.”
Mas
nada, absolutamente nada, preparou os cronistas presentes para o momento da Padeira de Aljubarrota. Uma mulher com mais músculo que um
cavalo de guerra, armou-se da pá e transformou a cozinha num campo de justiça
sumária. A coisa ocorreu assim: Brites de Almeida, padeira de profissão e
mulher de maus fígados, encontrou sete castelhanos escondidos na padaria,
provavelmente atraídos pelo cheiro a broa. Sem cerimónia, agarrou na pá do
forno e aplicou-lhes justiça popular com tanta força que as farinhas do dia
seguinte vinham com sabor a hermano. Foi o único caso na História em que o pão
foi simultaneamente arma, testemunha e memorial.
Mas
nem só a exímios archeiros e enérgicas padeiras se deveu a vitória, devemos
referir que, entre lanças afiadas e mandíbulas cerradas, se destacou uma
curiosa falange de combatentes: a notável Ala dos Namorados. Não se tratava,
como o nome poderia sugerir, de um batalhão de poetas suspirantes nem de
trovadores de olhar lânguido. Nada disso. Eram moços de vinte primaveras mal
contadas, que, além de espada e escudo, carregavam nos bolsos retratinhos
bordados das suas donzelas; e no coração uma determinação que só os amores
expectantes costumam incitar.
Lutavam
como possuídos, não por ardor patriótico — que o tinham, sim senhor — mas pelo
receio de que, caso caísse o reino nas mãos dos castelhanos, as suas Ineses e
Constanças fossem obrigadas a dançar ao som de fandangos alheios. E isso, na
alma de um rapaz enamorado, é mais doloroso que uma espadeirada entre as
costelas.
Em
dado momento da refrega, ao ouvir um arauto castelhano gritar “Castilla!”, um
dos moços retorquiu de lança erguida: “Castelo levas tu no toutiço”. E aí foi o
arauto à terra, vencido como tantos outros pelos rapazes da Ala dos Namorados,
firmes como estátuas de pedra… e ciúmes. Por mais que os livros de história descrevam
a heroicidade bélica, o certo é que Portugal também se fez com amores
inflamados, punhos cerrados e um ou outro bilhetinho perfumado escondido sob a
cota de malha.
E
se a Ala dos Namorados pelejou por ciúmes e promessas de beijos ao luar, a
cavalaria portuguesa, essa, entrou em campo com o porte digno de quem passa os
dias a treinar com lança e os serões a endividar-se, na jogatana. Montados em
corcéis que sabiam mais de guerra do que muitos fidalgotes sabiam de cartas e contas,
os cavaleiros portugueses apresentaram-se à lida vestidos de ferro, envoltos em
penachos, e com aquele olhar solene, mesmérico, que apenas o desconforto de uma
armadura completa consegue proporcionar. Ao contrário de certas cavalarias
estrangeiras que avançam em campo aberto como pavões em procissão, os nossos
cavaleiros eram dados ao improviso: entravam onde podiam, saíam onde calhava e
se encontravam um castelhano perdido, davam-lhe a conhecer a robustez do aço
português (na verdade, importado da Escócia) com toda a franqueza da ocasião.
D.
Nuno Álvares Pereira, esse asceta com punho de ferro, gritou à sua hoste
montada: “Quem cair, que caia com dignidade. E quem ficar, que faça barulho,
que o estrondo assusta mais do que a razão.” Resultado: o inimigo, baralhado
entre estratégia e bravura, recuou a rezar e a galopar em simultâneo, um feito
digno de menção em qualquer crónica.
E
assim foi que a cavalaria portuguesa, mais dada a rompantes do que a
coreografias tácticas se tornou em peça chave da vitória deixando no campo não
só cascos partidos e inimigos vencidos, mas também um significativo odor a bosta
de cavalos que perduraria por dias nas redondezas de Aljubarrota.
Mas,
enquanto os fidalgos suavam dentro das armaduras e os moços da Ala dos
Namorados riscavam o destino a golpes de paixão e aço, havia também um outro
exército presente em Aljubarrota, este desarmado, mas não menos ruidoso: o
povo. Sim, o povo. Essa multidão de olhares aguçados, língua afiada e
disposição para o escândalo. Gente vinda das aldeias próximas, das hortas ao
redor, das tabernas de Leiria, dos fornos de Alcobaça e até de um SPA das
Caldas da Rainha que, ao pressentir que algo de grandioso se cozinhava na
planície, acorreu como quem vai a romaria, mas trocando os santos por
estandartes e os círios por arrobas de curiosidade. Postaram-se em colinas,
sobre muros, pendurados em sobreiros e até em cima de burros. As mulheres levavam
cestas com pão e azeitonas, os homens carregavam odre ao ombro e opinião
pronta.
Quando
a poeira se ergueu e os primeiros gritos se ouviram, houve quem fizesse apostas
sobre o desfecho da luta. E quando a sorte se inclinou para o lado português, a
multidão, num êxtase tão nacional quanto irreverente, soltou vivas, saltou das
pedras, sacudiu as saias e correu, não para ajudar os feridos, que isso é
ofício de frades, mas para recolher lembranças da peleja: uma lança partida, um
elmo sem dono, e até, vimos bem, um dente castelhano ainda cravado na mandíbula.
Mais tarde, nos serões de Inverno, em redor do lume, essas gentes contariam,
cada qual ao seu modo, que estiveram “lá”, que viram tudo, que foram parte da
glória. E assim o povo, que não empunhou espada, cravou na História o seu olhar
atento, a sua gargalhada matreira e a inestimável arte de transformar cada
batalha em narrativa pessoal e agigantada.
Finalmente,
quando a poeira assentou e os estandartes inimigos jaziam no chão (um deles a
servir de toalha de piquenique a dois archeiros que decidiram almoçar cedo), D.
João de Castela viu o seu exército transformado num bando derrotado e pensou
que talvez a ideia de anexar Portugal fosse um pouco... precipitada.
Na
outra banda, D. João I olhou para o Condestável Nuno Álvares Pereira: “Ganhámos,
Nuno. E com estilo.”
“Mestre,
com estilo inglês, ímpeto português e um pão mais duro que o orgulho de
Castela.”
Sir
John Holland, limpando uma mancha de barro da armadura, acenou com cortesia: “Lovely
war, gentlemen. Call me when there’s another one”.
Então
D. João chamou-me. Com as mãos ainda sujas de pó e glória, disse-me: “Cronista
faz o favor de escrever tudo. Mas com graça, que os séculos hão-de lembrar-se
disto melhor com um sorriso. E não te esqueças dos ingleses. Foram úteis.” “Sim,
meu senhor.” Respondi, limpando discretamente uma nódoa de vinho do pergaminho.
“Mas se Vossa Alteza me permite, ponho também a padeira. Ela tem mais carisma
que meio exército.”
E
assim nos tornámos, sem saber, em improvável fotógrafo do século xiv, com pena
em vez de lente e ironia em vez de rolo. Não sei se o fizemos com rigor, mas
garantimos: ninguém saiu da batalha sem ficar na História. Nem nós. Afinal,
alguém tinha de contar como tudo aconteceu antes que o primeiro selfie com
armadura chegasse ao mundo.
O
povo celebrou, as badaladas tocaram e assim se fez História: com cavalos,
flechas, pão e uma pá homicida. Aljubarrota não foi apenas uma batalha, foi um
festival de criatividade bélica com convidados anglo-saxónicos e um cheirinho a
broa de milho no ar. Assim o vimos.
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