Saída de Liverpool, entrada no Limoeiro


Nas manhãs de Julho, o mar ao largo da Ponta Ruiva costuma parecer um espelho preguiçoso, reflectindo o céu algarvio com a inocência de quem não guarda memórias. Mas o Atlântico tem boa memória, ainda que não fale. E foi ali, nas águas traiçoeiras de Sagres, que o ERATO encontrou o seu canto final.

Corria o ano de 1832. A bordo, o capitão Carter levava o navio rumo a Livorno, com a dignidade própria de quem desafia os continentes na sua deriva geológica. Saíra de Liverpool a 21 de Junho, embalado pela confiança da marinhagem inglesa e por mercadorias que jamais chegariam ao destino. No dia 12 de Julho o ERATO vergou-se à costa agreste da Ponta Ruiva, onde as ondas não perdoam e os rochedos guardam segredos antigos.

Do desastre salvaram-se alguns restos, como é costume. Mas os salvados, em vez de irem parar às mãos de quem de direito, foram desviados por quem jurava proteger os interesses da Coroa britânica. Macedo e Brito, o vice-cônsul inglês em Lagos, que usava o cargo como quem veste um casaco pomposamente engomado, viu ali uma oportunidade e ajudou-se, generosamente, no espólio do naufrágio. Esqueceu-se apenas de um pormenor: não era profissional da pilhagem, nem vivia em tempos de corso. Foi preso no Limoeiro, o velho cárcere de Lisboa, onde muitos nobres e patifes partilhavam paredes húmidas e culpas mal distribuídas.

O ERATO, batizado com nome de musa, filha de Zeus, acabou submerso no reino de Neptuno. Já Macedo e Brito perdeu a honra em terra firme onde, às vezes, se naufraga com mais estrondo. A história esqueceu os nomes dos marinheiros, dos carregadores e dos humildes que viviam do mar. Mas ainda hoje, quando o vento sopra de levante e as gaivotas se inquietam à vista da falésia, há quem diga que o oceano se lembra. E que o canto da musa naufragada ressoa, de quando em quando, entre os arenitos rubros da Ponta Ruiva.

 

Liverpool e o Limoeiro no séc xix

 


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