Tinha lavrado no meu imaginário Manual de Autonegação para Almas Prudentes, germinado no início do novo milénio, que o segredo da vida reside em manter uma fronteira intransponível entre a realidade e a fantasia, erguendo, entre ambas, uma muralha de vigilância constante, onde não penetrem os devaneios, as extravagâncias nem as viscerais pulsões que tantas vezes nos arrastam ao abismo ou à glória. Enfim, guardar-se, como quem se protege da COVID, das excentricidades do desejo, das arritmias da esperança e das tonturas que os sonhos costumam causar a quem os leva a sério.
Viver, segundo esta doutrina, é um exercício de contenção lúcida: evitar que os ímpetos do desejo, por mais brilhantes que se mostrem, perturbem a tranquilidade do quotidiano e contaminem, com o seu fulgor febril, o mundo concreto das relações. É uma filosofia que preconiza o equilíbrio, a moderação, a harmonia; um ideal de vida isenta de sobressaltos, sem as agruras do entusiasmo nem as vertigens da esperança. Uma vida de superfície tranquila, onde as águas não se encrespam e o coração bate, sim, mas em surdina. A neutralidade emocional torna-se, aos poucos, uma espécie de armadura, pesada, mas eficaz.
No entanto, essa blindagem do real contra o imaginário, esse cordão sanitário entre o que se sonha e o que se faz, tem o seu preço. Ao interditar o sonho, cerceia-se a germinação das ideias que fundam e transformam o mundo. Impedir que as extravagâncias influenciem a realidade é, talvez, impedir a própria invenção da vida. Então não são os impulsos, as intuições e as desrazões súbitas que fazem nascer os grandes actos, os feitos eternos e as conquistas duradouras?!
Imaginemos alguém que admira, por exemplo, Tom Waits e Manuel João Vieira; como pode essa pessoa escolher uma vida sem ousar, sem risco, permanentemente com medo do julgamento dos outros?!
Ora aqui está um magnífico repto para reflexão. Admirar Tom Waits e Manuel João Vieira e, ao mesmo tempo, viver uma vida contida, asséptica, ordeira… é como venerar o deus Baco e fazer voto de sobriedade. Tom Waits, com aquela voz de prego enferrujado e alma de poeta bêbado, não canta a vida: esgana-a, mastiga-a, cospe-a em forma de beleza deformada. Ele vive no risco, na margem, no absurdo e convida-nos a dançar sobre os estilhaços disso tudo. Cada música sua é uma ode ao que é torto, falhado, mas vivo, visceralmente vivo.
E o Manuel João Vieira, esse príncipe do delírio luso, é a própria encarnação da ironia e da transgressão. Brinca com o kitsch como um demiurgo pop, desafia o bom gosto com uma sofisticação burlesca, e faz do absurdo um acto de resistência. O seu génio é uma gargalhada desobediente ao conforto estabelecido.
Então, como é que alguém que os admira pode escolher uma vida sem rasgo? A resposta é, no mínimo, incómoda: pela covardia disfarçada de lucidez. É que o admirador de Waits e Vieira sabe que existe um mundo mais interessante do que aquele, asséptico, onde se move. Um mundo onde se grita, se ama, se falha, se perde, se inventa. E em vez de dar um salto arrebatado, transgressor, limita-se a arrastar os pés polindo a calçada do quotidiano.
O rigor cartesiano da existência sem sobressaltos, se por um lado evita os tropeços, por outro inibe os voos. A alma, enclausurada numa austeridade emocional, facilmente resvala para uma melancolia elegante mas estéril, uma vida insípida, desbotada, onde a beleza é medida e o risco evitado. Vive-se, sim, com serenidade, mas uma serenidade talvez demasiado próxima da apatia.
Ainda assim, não se deve desprezar o valor dessa paz. Num mundo saturado de ruído, imediatismo e paixão desgovernada, a escolha de uma vida ordeira e livre dos caprichos do desejo é, ela própria, uma forma de rebeldia serena. Há quem encontre, nesse comedimento, uma felicidade discreta sem espectáculo nem sobressaltos, um contentamento feito de silêncio, tempo lento e previsibilidade. Um jardim sem rosas, mas também sem espinhos. Uma serenidade quase clínica, como a de um doente sedado que já não sente nem dor... nem emoção.
Há quem ache este o único modo sensato de existir. E talvez não estejam totalmente errados. Os exaltados vivem aflitos, os apaixonados sofrem, os visionários ardem depressa e os rebeldes acabam quase sempre na margem da estrada, rodeados de dívidas e arrependimentos. A contenção é segura. É aborrecida, sim, mas segura.
No fundo, trata-se de uma escolha, entre uma vida fervilhante mas caótica, onde se tropeça nos próprios desejos, e outra, higiénica e inodora, onde nada dói porque nada se sente. A primeira arrisca a ruína; a segunda garante o tédio. É inequívoco que os que ousam sonhar têm a irritante tendência de querer viver. Ora, há que evitar tudo o que implique risco, esforço, frustração, ou glória. As paixões, perigosas como fogos de Verão, são substituídas por hobbies seguros: Sudoku, jardinagem, ou indignação nas redes sociais. E, em vez disso, constrói-se uma existência exemplar, discreta, funcional, com um sorriso convencional e contas em dia.
E no fim? No fim há a grande recompensa: uma velhice saudável, lúcida, e perfeitamente desprovida de memórias que valham a pena. Uma colecção de dias iguais, guardados como recibos antigos. Nenhuma tragédia, mas também nenhum feito. Nenhum escândalo, mas também nenhum milagre. Os cemitérios estão cheios de almas assim, bem-comportadas e irrepreensivelmente imóveis.
Mas, porque é que há gente que vive, ou procura viver, desta forma? Creio que uma das razões, talvez até a mais importante, assenta no facto de que desde cedo somos amestrados para caber. Para caber na sala de aula, na profissão decente, na fotografia da família e, sobretudo, na ideia que os outros têm de nós. O que nos ensinam e pedem não é que sejamos ousados, mas submissos, a obediência ao bom senso, ao decoro, ao “não faças ondas”. A educação é, frequentemente, um subtil processo de castração simbólica, onde os impulsos mais autênticos, emocionais, até espirituais, são tratados como excentricidades ou delírios ameaçadores.
O julgamento dos outros assume-se como um
tribunal interior permanente, um autêntico tribunal do Santo Ofício. É como se
vivêssemos debaixo de um olhar invisível, dos pais, dos professores, dos
colegas, da sociedade, de Deus, do algoritmo que regula o funcionamento da rede
social; e esse olhar condiciona e molda a nossa acção. Rir alto demais? Risco.
Dançar sem jeito? Risco. Amar quem não se deve, dizer o que não convém, seguir
uma ideia absurda? Tudo riscos. Por isso, muitos não escolhem conscientemente a
vida sem rasgo, cedem-lhe, derrotados pela exaustão de tentar parecer normais.
Passam a vida a pedir desculpa por serem quem são e a usar a moderação como
couraça. Tornam-se mestres da contenção, especialistas em abafar qualquer
faísca antes que possa incendiar a reputação.
Talvez o equilíbrio esteja, como sempre, na justa medida; não deixar que os delírios conduzam a vida, mas tampouco expulsá-los dela. Permitir-lhes o lugar do hóspede, mas não do senhor. Uma existência inteiramente asséptica de paixão não é mais virtuosa, é apenas mais previsível. E a previsibilidade, quando não alimentada por algum frémito do imaginário, acaba por ser simplesmente entediante. Pois aquela vida que parecia tão tranquila e segura revela, finalmente, o que é, um palco demasiado breve para se viver apenas nos bastidores. Viver, afinal, é encontrar o exacto ponto onde a ousadia não nos destrói, mas também não nos abandona. É aceitar que a realidade, quando habitada com sensibilidade e arte, pode ser lugar de sonho.
Para viver sem temer a própria sombra, há que reconhecer que somos feitos também de falhas, contradições e zonas opacas, e que não há nisso nada de vergonhoso. Para viver sem o peso do juízo alheio, há que compreender a natureza de quem julga: quase sempre, os que censuram são os que não tiveram coragem de fazer. Os que exclamam: - Excêntrico! Perigoso! Irresponsável! São, muitas vezes, os que frustraram em si mesmos a audácia que agora vêem e criticam no outro.
Não devemos desculpar-nos por sermos como somos. Não devemos viver para ser compreendidos pelos outros, mas sim para não nos trairmos. Devemos viver com autenticidade, não com permissão.
E quanto à felicidade, esse conceito
envernizado, higienizado e formatado pela norma social e pelo marketing da
alma, talvez o melhor seja deixá-la em paz. Não a perseguir como quem corre
atrás de um balão ao vento. Em vez disso, procurar viver com autenticidade, fruindo
o momento, entregues àquilo que verdadeiramente nos move e aceitando o que vier
como consequência, não como recompensa.
A felicidade deve chegar como uma visita inesperada. E se não chegar… que ao menos não tenhamos vivido à espera dela.
Quem nunca se permitiu enlouquecer um pouco, viveu, no fundo, sempre em coma.
E, assim, rasguei o meu Manual de Autonegação para Almas Prudentes.
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