nesta
rua onde os telhados conversam aos gritos
(telha contra telha, nervo contra goteira),
moram os vizinhos de sempre:
o da esquerda, com o relógio às três e o coração às avessas;
a da direita, de cabelo aos berros e alma em ponto de fervura.
ninguém
se entende, claro.
porque a parede é fina,
mas o orgulho, grosso.
a
vizinha coze feijões de rancor desde 82,
e o vizinho responde com pregos no silêncio do domingo.
— bom dia, diz ninguém,
— está bom é para calar-se, responde o eco.
a
roupa no estendal dança mais do que as palavras.
e as janelas, ora abertas, ora cuspidoras de olhares.
há
um cão que ladra por hábito
(e talvez por solidariedade com a discórdia crónica).
ah,
se ao menos chovesse conciliação!
mas não: chove loiça, panelas sobretudo.
chove queixas na caixa do correio.
chove silêncio agudo, que corta melhor que faca.
a
aldeia (porque isto era aldeia antes de virar bairro)
já não lembra o cheiro do pão quente
só o calor das discussões mornas e dos muros frios.
e
no entanto, num canto invisível da rua,
um gato dorme sobre o muro que os separa.
ronrona uma paz que ninguém ouve.
talvez amanhã alguém escute.
-
Era
mais ou menos assim que eu escrevia nos anos 80, numa busca pelo absurdo
iniciada na década anterior, em que a escassa mestria das regras da escrita me lançava
num registo nefelibata: sonhador, errante e transgressor. Hoje, escrevo sobre o
mesmo tema, mas de forma diferente embora idêntico registo continue presente.
-
Naquela rua estreita onde as casas pareciam erguer-se apenas para se enfrentarem, os vizinhos não se suportavam. Não era um ódio grandioso, dramático, de punhos cerrados e lágrimas no chão, era um fastio persistente, um cansaço de convivência que se enraizava nas paredes finas e nos passos mal medidos. Cada um morava como quem ocupa uma trincheira: o homem da casa da esquerda contava os minutos para que a da direita tropeçasse na própria teimosia; e a mulher da casa da direita afivelava um sorriso de guerra sempre que o outro esquecia o lixo à porta.
Era uma relação coreografada pelo desacordo: ela cozinhava com janelas abertas para espalhar o cheiro do alho de propósito; ele batia os tapetes no muro comum sempre que sabia que ela dormia. Cumpriam, sem saber, um ritual antigo de inimizade mútua, como se tivessem nascido para o antagonismo e não soubessem já viver sem ele.
O mais curioso era que, por baixo das farpas, havia uma sintonia insuspeita. Ambos amavam hortênsias, mas fingiam desprezo por flores. Ambos deixavam água e pão para o mesmo gato vadio, mas diziam que era por piedade, não afeição. Ambos escutavam a mesma canção antiga nas noites de sábado, mas baixavam o volume assim que percebiam o outro a ouvir também.
A rua vivia deste equilíbrio dissonante. As paredes rangiam com a tensão contida, os estores subiam com um tilintar de desconfiança, os estendais abanavam como bandeiras de guerra. Ninguém ali se cumprimentava sem uma vírgula de ironia. Ninguém pedia sal sem cuspir fel.
Até que, um dia, sem aviso, tudo se dissolveu numa suspeita de revelação. O homem, ao mirar-se ao espelho, percebeu que as viagens ao passado que julgava ter feito (as cenas de outros tempos, as gentes que vira e os lugares distantes), talvez nunca tivessem sido mais do que projecções da sua própria ânsia. E com essa descoberta veio outra: também a sua vizinha, com todos os seus gestos teatrais, era apenas uma parte do mesmo enredo interior.
Percebeu, então, que toda aquela vida de birras e implicâncias era menos sobre ela e mais sobre ele. Que o mundo, com os seus vizinhos intragáveis, os seus ruídos e fantasmas, talvez sempre tivesse habitado dentro de si, e não fora. E com isso veio um certo alívio, como a acalmia que sucede ao fim de uma tempestade: uma ausência súbita de necessidade de ter razão, de responder, de vencer.
Nessa manhã, em vez de fechar a janela com estrondo, deixou-a escancarada. O vento entrou sem pedir licença e, por um instante, levou com ele o velho prazer da guerra. O gato subiu ao muro. E não houve nenhuma panela a voar.
P.S.
- Embora o óbvio dispense enunciação, dirijo-me aos amantes de bonecos
(imagens) para esclarecer: o tema não é a vizinhança, mas a escrita.
Sem comentários:
Enviar um comentário