«Célebre
na história de Lagos, foi o Cine-Teatro Ideal, de Simões Neto, localizado na
Rua Cândido dos Reis, onde hoje se encontra o hotel Riomar. Este empresário
explorou, antes, o “Salão Animatográfico” ou “Salão do Simões”, localizado na
Rua do Outeiro (actual Rua Dr. Joaquim Telo), a primeira sala de cinema
existente
-
Naquele Sábado ventoso de Novembro de 1914 esta pequena cidade algarvia foi sacudida por um inusitado alvoroço: alguns rapazes da terra, um grupo irrequieto, dado mais à traquinice do que à disciplina, organizavam uma récita de caridade em prol das viúvas e órfãos belgas, vítimas da invasão alemã à sua pátria.
O evento decorreria no Salão Animatográfico, propriedade do Sr. António Simões Neto, homem de bigode retorcido, paletó desbotado e eterno odor a cânfora. A sala, com as suas cadeiras rangentes de madeira escura, as tapeçarias desbotadas e um projector que crepitava como lareira atiçada, fora apetrechada à pressa com uma enorme cortina de sarja que fingia ser pano de boca. Ao fundo, junto à entrada de serviço, um candeeiro oscilava a cada passo, ameaçando incendiar o cartaz pintado à mão onde se lia, com pompa exagerada: «Grande Soirée Artístico-Humanitária – Entrada: 200 réis».
Os jovens intérpretes, vestidos com o que se pôde arranjar de um baú de velhas roupas da D. Ana Rijo, protectora dos talentos dramáticos da cidade, ensaiaram durante três tardes e meia uma peça cujo enredo já ninguém conseguia explicar sem tropeçar na lógica. Era, ao que constava, uma fábula alegórica sobre o sofrimento dos povos, envolvendo um ferreiro flamengo, uma princesa eslava, um pastor da Boémia e, inexplicavelmente, um fauno que versejava em alexandrinos, para além de figurantes sem papel definido.
O espectáculo começou com vinte minutos de atraso, por culpa do Taquelim, o mais novo do grupo, que perdera o sapato esquerdo no caminho e aparecera com um chinelo de senhora enfiado no pé, coberto de serapilheira para disfarçar. Quando finalmente se abriram as cortinas (na verdade, quando o pano cedeu à força conjunta de dois rapazes escondidos nos bastidores), surgiu em cena o Galvão, encarnando o ferreiro flamengo com uma pronúncia que mais parecia de Alvor, e um martelo de cozinha enfiado no cinto.
A récita decorreu num crescendo de desastres: o fauno caiu do tamborete que fazia de rochedo e rasgou as calças em frente à primeira fila; a princesa, interpretada pela M.elle Amélia Sant’Anna, desmaiou por ter apertado demasiado o espartilho, e foi reanimada com um copo de gasosa e palmadinhas pouco cerimoniosas; e o pastor da Boémia, não decorando as deixas, improvisava com rimas que faziam o público rir até às lágrimas, sobretudo quando confundiu "peidão" com "perdão" num dos monólogos mais dramáticos, em que ignorara as linhas sopradas pelo ponto, o experiente Sr. Ladeira.
Um
figurante, imóvel em segundo plano, deixou tombar o cinto que lhe segurava as
calças e, ao tentar, atabalhoadamente, evitar a sua descida, deu um passo atrás
e pisou outro figurante, que soltou um grito agudo no exacto momento em que o
ferreiro flamengo proclamava, com voz grave, ou melhor, esganiçada: –“A justiça
será feita!”. E à boca de cena, o pastor da Boémia lutava, agora, contra a
gravidade: a peruca escorregava-lhe lentamente sobre os olhos, conferindo-lhe o
aspecto solene e perdido de um carneiro pensativo.
Para rematar a soirée, o Sr. Simões, visivelmente comovido (ou sensibilizado por um abafadinho generoso), ofereceu ao público uma sessão cinematográfica com "As últimas maravilhas do mundo", que consistia num documentário sobre as cheias em Paris, seguido de uma curta-metragem onde um cão perseguia um polícia, ladrando, sem que se percebesse porquê e sem que se ouvisse o ladrar do cão, já que o filme era mudo – como todos os outros da época. A fita partiu-se duas vezes e a máquina engasgava-se com estalidos que faziam os mais crédulos temer que pegasse fogo ao edifício.
A récita, no seu conjunto, foi um absoluto êxito: não pelo rigor teatral, mas pela alegria que semeou e pelos tostões que, ao fim da noite, encheram uma modesta caixa de sapatos com a inscrição "Para os Nossos Irmãos Belgas". Os senhores da cidade fingiram solenidade, as senhoras suspiraram com ternura pelos pequenos desastres e os rapazes, eufóricos, já discutiam nos bastidores o próximo espectáculo que, diziam, teria cavalos, acrobatas e fogo-de-artifício.
Para isso, porém, teriam de aguardar até 1937 e confiar no novo arrojo do Sr. Simões, a Esplanada-Jardim do Cine-Teatro Ideal, também conhecida por Hipódromo, implantada a céu aberto na Rua da Meia Laranja (hoje Rua da Estrema), a fim de antecipar, quase profeticamente, a mesma caridade para com outras viúvas e órfãos, que os alemães, reincidentes na tragédia, viriam a semear, de novo, pela Europa fora.
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