«Célebre na história de Lagos, foi o Cine-Teatro
Ideal, de Simões Neto, localizado na Rua Cândido dos Reis, onde hoje se
encontra o hotel Riomar. Este empresário explorou, antes, o “Salão
Animatográfico” ou “Salão do Simões”, localizado na Rua do Outeiro (actual Rua
Dr. Joaquim Telo), a primeira sala de cinema existente em Lagos. Em finais de
1914 ali se deu uma récita de caridade a favor das viúvas e órfãos belgas,
promovida por um grupo de rapazes de Lagos.» in CASTELO, F. (2012) “O Teatro e
os teatros em Lagos”.
Naquele Sábado ventoso de Novembro de 1914 esta
pequena cidade algarvia foi sacudida por um inusitado alvoroço: alguns rapazes
da terra, um grupo irrequieto, dado mais à traquinice do que à disciplina,
organizavam uma récita de caridade em prol das viúvas e órfãos belgas, vítimas
da invasão alemã à sua pátria.
O evento decorreria no Salão Animatográfico,
propriedade do Sr. António Simões Neto, homem de bigode retorcido, paletó
desbotado e eterno odor a cânfora. A sala, com as suas cadeiras rangentes de
madeira escura, as tapeçarias desbotadas e um projector que crepitava como
lareira atiçada, fora apetrechada à pressa com uma enorme cortina de sarja que
fingia ser pano de boca. Ao fundo, junto à entrada de serviço, um candeeiro
oscilava a cada passo, ameaçando incendiar o cartaz pintado à mão onde se lia,
com pompa exagerada: «Grande Soirée Artístico-Humanitária – Entrada: 200 réis».
Os jovens intérpretes, vestidos com o que se
pôde arranjar de um baú de velhas roupas da D. Ana Rijo, protectora dos
talentos dramáticos da cidade, ensaiaram durante três tardes e meia uma peça
cujo enredo já ninguém conseguia explicar sem tropeçar na lógica. Era, ao que
constava, uma fábula alegórica sobre o sofrimento dos povos, envolvendo um
ferreiro flamengo, uma princesa eslava, um pastor da Boémia e, inexplicavelmente,
um fauno que versejava em alexandrinos, para além de figurantes sem papel
definido.
O espectáculo começou com vinte minutos de
atraso, por culpa do Taquelim, o mais novo do grupo, que perdera o sapato
esquerdo no caminho e aparecera com um chinelo de senhora enfiado no pé,
coberto de serapilheira para disfarçar. Quando finalmente se abriram as
cortinas (na verdade, quando o pano cedeu à força conjunta de dois rapazes
escondidos nos bastidores), surgiu em cena o Galvão, encarnando o ferreiro
flamengo com uma pronúncia que mais parecia de Alvor, e um martelo de cozinha
enfiado no cinto.
A récita decorreu num crescendo de desastres: o
fauno caiu do tamborete que fazia de rochedo e rasgou as calças em frente à
primeira fila; a princesa, interpretada pela M.elle Amélia Sant’Anna, desmaiou
por ter apertado demasiado o espartilho, e foi reanimada com um copo de gasosa
e palmadinhas pouco cerimoniosas; e o pastor da Boémia, não decorando as
deixas, improvisava com rimas que faziam o público rir até às lágrimas,
sobretudo quando confundiu "peidão" com "perdão" num dos
monólogos mais dramáticos, em que ignorara as linhas sopradas pelo ponto, o
experiente Sr. Ladeira.
Um figurante, imóvel em segundo plano, deixou
tombar o cinto que lhe segurava as calças e, ao tentar, atabalhoadamente,
evitar a sua descida, deu um passo atrás e pisou outro figurante, que soltou um
grito agudo no exacto momento em que o ferreiro flamengo proclamava, com voz
grave, ou melhor, esganiçada: –“A justiça será feita!”. E à boca de cena, o
pastor da Boémia lutava, agora, contra a gravidade: a peruca escorregava-lhe
lentamente sobre os olhos, conferindo-lhe o aspecto solene e perdido de um
carneiro pensativo.
As melodias em surdina, arrancadas com devoto
esforço por D. Clotilde Cássio ao piano decrépito, pairavam etereamente sobre a
cena, tentando imprimir-lhe uma gravidade quase trágica, num esforço nobre,
embora em vão. O contraste entre a música grave, que continuava a insistir numa
tensão inexistente, e os tropeços cada vez mais absurdos da representação,
levou os espectadores da contenção inicial à gargalhada aberta, primeiro contida,
depois irresistível.
Para rematar a soirée, o Sr. Simões,
visivelmente comovido (ou sensibilizado por um abafadinho generoso), ofereceu
ao público uma sessão cinematográfica com "As últimas maravilhas do
mundo", que consistia num documentário sobre as cheias em Paris, seguido
de uma curta-metragem onde um cão perseguia um polícia, ladrando, sem que se
percebesse porquê e sem que se ouvisse o ladrar do cão, já que o filme era mudo
– como todos os outros da época. A fita partiu-se duas vezes e a máquina
engasgava-se com estalidos que faziam os mais crédulos temer que pegasse fogo
ao edifício.
A récita, no seu conjunto, foi um absoluto
êxito: não pelo rigor teatral, mas pela alegria que semeou e pelos tostões que,
ao fim da noite, encheram uma modesta caixa de sapatos com a inscrição
"Para os Nossos Irmãos Belgas". Os senhores da cidade fingiram
solenidade, as senhoras suspiraram com ternura pelos pequenos desastres e os
rapazes, eufóricos, já discutiam nos bastidores o próximo espectáculo que,
diziam, teria cavalos, acrobatas e fogo-de-artifício.
Para isso, porém, teriam de aguardar até 1937 e
confiar no novo arrojo do Sr. Simões, a Esplanada-Jardim do Cine-Teatro Ideal,
também conhecida por Hipódromo, implantada a céu aberto na Rua da Meia Laranja
(hoje Rua da Estrema), a fim de antecipar, quase profeticamente, a mesma
caridade para com outras viúvas e órfãos, que os alemães, reincidentes na
tragédia, viriam a semear, de novo, pela Europa fora.
Sem comentários:
Enviar um comentário