Há imagens que
são sementes lançadas ao terreno fértil da imaginação. Algumas nascem do clarão
súbito de uma fotografia; outras, da poética colorida de uma pintura. Nas
minhas recentes errâncias pelos vastos oceanos da Internet, à procura de telas
onde grandes veleiros rasgam o horizonte, ou se defrontam em épicos combates
navais, encontrei esta pintura, pungente na sua quietude.
É autor desta
obra intitulada “The Stay at Homes/Looking Out to Sea”, o norte-americano
Norman Rockwell que a publicou na revista “Story Illustration for Ladies Home
Journal” de Outubro de 1927.
A publicação do
FB de onde copiei a imagem tinha vários comentários, um deles propunha uma
legenda para a pintura “not yet, not anymore” (ainda não / já não), remetendo
para a condição do neto e do avô.
Não conheço a
história que a imagem ilustrou originalmente, mas certamente não será muito
diferente desta que imaginei e burilei na calma das férias, e de que
resultou o que aqui se oferece.
A Vigia
Era
uma manhã límpida de Junho, dessas em que o mar parece um espelho
verde-azulado, cortado apenas pelo traço branco das velas. Naquela colina batida
pelo vento, o avô e o neto eram como sentinelas de pedra. Só o cachorro
saltitava, irrequieto. O velho, com a mão pousada no ombro do rapaz,
transmitia-lhe, sem palavras, a antiga ciência dos que sabem ler o mar: que
cada partida é uma promessa e cada regresso, um milagre.
As
velas enfunadas brilhavam ao sol, e o casco cortava a ondulação como se
soubesse de cor o caminho para o alto-mar. Lá dentro, algures entre cordas,
barris e sal, seguia o pai, marinheiro experimentado, agora rumo a uma longa
viagem de comércio. O menino, de chapéu na mão, mantinha os olhos presos ao
navio que se afastava lentamente, enquanto assimilava que o mar não é só azul e
horizonte, é também espera e silêncio.
O avô, antigo capitão reformado, pousava
a mão firme sobre o ombro do rapaz. O gesto dizia mais do que qualquer palavra:
era promessa de que estariam ali, naquele mesmo lugar, para receber o pai quando
regressasse.
O cachorro, inquieto, farejava o ar
salgado, como se também quisesse guardar na memória o rasto do navio. As
gaivotas riscavam o céu, e o vento trazia o eco longínquo das vozes e do
estalar das velas. O menino respirava fundo, como se quisesse guardar todo
aquele momento dentro de si, o azul do mar, o brilho da luz, a figura do pai a
acenar no convés.
- Ele volta, não é, avô? – perguntou o
petiz, sem desviar o olhar.
- Voltam sempre, meu rapaz… voltam sempre. Respondeu o velho, embora soubesse
que o mar, por vezes, não devolve todos os que nele se aventuram.
E
ali ficaram, lado a lado, como guardiões silenciosos, a olhar para a linha do
horizonte onde o navio se tornava cada vez mais pequeno, até desaparecer na
curvatura da Terra.
Passaram-se meses. O verão deu lugar a um outono ventoso, e este cedeu a um inverno áspero, em que as ondas rebentavam contra o molhe com tal força que os borrifos de água se sentiam nas ruas da vila. E mais tempo foi passando, medido não só pelos anos, mas pelo diálogo constante entre o vento e as ondas.
O menino crescera um pouco nesse tempo. Já não corria pela praia com a mesma energia; aprendera, com o avô, a ler cartas náuticas, a reconhecer o rumo de um navio pelas velas, e a interpretar o humor do mar pelo tom do vento. Guardava no quarto um pequeno diário onde desenhava os barcos que via passar ao largo, imaginando sempre que, entre eles, podia estar o do pai.
O avô, por seu lado, mantinha-se fiel ao ritual: todos os dias, ao amanhecer, subiam juntos à colina. O cão, agora mais sereno, já não corria na frente; caminhava devagar, mas nunca faltava à vigia.
E então, certa manhã, o horizonte alterou a respiração. Uma mancha branca cresceu, rompendo o limite entre céu e água.
O menino sentiu o coração bater mais depressa.
- Avô… é ele? — perguntou, quase sem respirar. O
velho capitão apertou-lhe o ombro com mais força, o olhar fixo no navio que se
aproximava. Reconheceu, antes de qualquer outro, a forma familiar do casco, a
mancha do remendo na vela grande, e o modo como as velas se inclinavam ao sabor
do vento.
- É ele, meu rapaz… o teu pai voltou.
O grito de alegria do menino misturou-se com o ladrar do cão, e ambos correram pela encosta abaixo, deixando o avô seguir ao seu ritmo. Naquele momento, todos os invernos que tinham vivido pareceram dissolver-se no calor do reencontro e a distância entre partida e regresso desfez-se num só instante, como se o tempo fosse apenas espuma.
O pai desceu a prancha com os braços abertos, trazendo consigo o cheiro do mar e histórias que, naquela noite, se prolongariam à mesa, sob a luz tremeluzente do candeeiro a petróleo. Naquele abraço junto ao cais, o mar devolveu não apenas o pai, mas também a certeza de que a espera é um acto de fé. E, na colina, ficou gravada uma herança invisível: o saber que, mesmo quando o horizonte parece vazio, há sempre um navio a caminho.
E assim, o ciclo fechava-se: o mar levava, o mar devolvia, e na colina ficaria sempre alguém à espera, de vigia com os olhos postos no horizonte.
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