Crónica de um Ornamento

 


Há criaturas que, por desígnio insondável ou distracção da Natureza, atravessam a existência sem nunca terem exibido qualquer préstimo palpável à sociedade que as alberga. Falo, claro, de um Ornamento Bípede, um indivíduo cuja mais nobre utilidade, caso estivéssemos a considerar uma ocupação há cinco décadas atrás, teria sido a de permanecer hirto ao lado do televisor, servindo de interruptor humano para alternar entre a RTP1 e a RTP2, dado não existir ainda o mágico telecomando.

Mas a vida é generosa para com os inúteis que se colocam bem. O progresso, esse cúmplice implacável do absurdo, retirou-lhe a última esperança de utilidade prática, o comando remoto surgiu e, com ele, a obsolescência do Homem-Pivô-de-Televisor. Seria de esperar que se recolhesse, resignado, ao limbo discreto dos inactivos funcionais. Nada disso. O nosso herói, ou melhor, o nosso bibelô institucional, reinventou-se.

Hoje, não mexe em botões, mas exibe com galhardia os seus. Vive da imagem, que cultiva com a sofreguidão de um narciso cultivado com o melhor húmus. Circula por congressos onde nada se discute, preside a comissões de coisa nenhuma, ostenta comendas que lhe são atribuídas pela sua inquestionável aptidão para a imobilidade. Foi elevado a dignitário do Nefando Instituto para a Promoção do Nada em Particular, e membro honorário do Grémio Internacional dos Cargos Pomposos e Irrelevantes.

O seu currículo é um rosário de nulidades laureadas. “Consultor Estratégico para a Visibilidade Transversal de Experiências Interdisciplinares”, seja lá o que isso for. Publicou um artigo sobre "Empatia em Ambientes Virtuais" e proferiu uma conferência sobre “O Silêncio como Forma de Expressão nas Organizações de Baixo Impacto”. O público não pateou, portanto gostou, ainda que a sala estivesse vazia.

É um vulto do nosso tempo, não por mérito, mas por ausência de alternativa. Onde dantes se exigia acção, hoje basta parecer ocupado. O inútil profissional tornou-se património simbólico da mediocridade organizada. Já ninguém espera dele o menor gesto de esforço: o seu simples estar é considerado contributo bastante. E tem porte para isso, como um candeeiro de iluminação pública, desses modernos a LED, de que nem se percebe a luz que irradiam.

E, no entanto, ali vai ele, gravata de nó duplo, peito eriçado de broches comemorativos de sessões protocolares, a receber o enésimo “Prémio Excelência em Relevância Potencial” com um semblante que diz tudo e nada.

E se o colocássemos ao lado do televisor, vá, para ver se ainda teria alguma utilidade? Mas desconfio que não. Seria demasiado exigente. E ele, coitado, já se cansa só de existir.

 


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