A Tábua Levantada



A TÁBUA LEVANTADA

Sempre fora dado a enigmas e charadas, a caças ao tesouro e a mapas desbotados com um xis marcado em vermelho. Seguindo a estranha missiva que lhe fora endereçada, prontamente se apresentou à entrada da vetusta habitação – há muito devoluta – do memorável escritor João Bento. A rua, como a casa, parecia deserta.

Empurrou o que restava duma portada em pestana, presa por uma derradeira dobradiça já entregue à ferrugem. Ao primeiro toque, esta rendeu-se, tombando no chão com um estalido metálico, ressoando na solidão daquelas paredes desabitadas. Penetrou, então, o edifício escuro e bafiento por aquele vão já desprovido de protecção.

Lá dentro reinava o caos conhecido desde a infância: cacos de loiça, tábuas partidas do soalho, trapos e pedaços de cartão já de difícil identificação, tudo uniformemente encardido pelo tempo e pelo pó espesso de décadas. Um interior reduzido à decadência, guarnecido por dejectos de aves, felídeos e roedores, entre os quais se arrastavam insectos variados: uns alimentando-se de detritos (guanóbios), outros deles próprios (guanófilos).

Aos poucos, habituando-se os olhos à penumbra – não completa graças aos múltiplos vãos desguarnecidos e buracos esculpidos pelas intempéries, por onde se insinuavam rasgos mortiços do céu invernal – foi avançando de divisão em divisão até alcançar o salão nobre, que, pela sua dimensão, traía o passado senhorial da casa. Ali, onde outrora valsas e mazurcas haviam ressoado entre flutes de champanhe e risos da alta roda, restavam apenas vestígios da antiga opulência. Desaparecera o estuque em escaiola, furtadas as molduras, os remates de escadaria, os azulejos dos lambris e os rodapés de madeira exótica – saqueados por invasores ávidos de converter velharias em produto vendável, efémero e entorpecedor da alma.

Num dos cantos da sala, uma tábua do soalho erguia-se quase à vertical, qual marco geodésico num deserto plano. A fenda escura revelada exigiu o recurso à luz trémula de uma pequena lanterna. No interior, um embrulho rude, de pano grosso e sujo, aguardava. Retirou-o com cuidado. O tecido estava enovelado sobre si mesmo e atado com fios de linho puído.

Desembaraçando a atadura, desenrolou o pano com crescente curiosidade. O conteúdo revelou-se insólito: meia dúzia de pincéis artísticos, gastos e ressequidos, envoltos em folhas de papel avulso e encerrados numa sacola de lona.

Não lograva compreender a importância daquele achado, tão estranhamente antecipado pela mensagem recebida no dia anterior, lacónica e grafada num pequeno cartão encerado:

NA CASA DO VELHO BENTO, NO SALÃO, O QUE CONTO ESPERA NO CHÃO.

Já na rua, sob a luz oblíqua do entardecer, examinou com maior atenção o conteúdo. Os pincéis, velhos e enegrecidos pela tinta seca, nada revelavam à primeira vista. Porém, as folhas soltas começaram a esvoaçar, planando suavemente até ao chão. Recolheu-as e, folheando-as com dedos tensos, deparou-se com um texto manuscrito. Relato? Romance? Conto? Não conteve a curiosidade e começou a leitura:


FERNÃO

Andava Fernão Coutinho a restolhar pelos campos quando, inesperadamente, topou com um grupo de homens descomunais, de olhos claros e cabelos alvos, envergando elmos com cornos e empunhando espadas e machados ameaçadores. Aterrador cortejo de nórdicos.

Entre o natural receio e a avidez de quem nunca deixara o seu rincão nem conhecia o mundo nem os seus caprichos, Fernão interrogou-se:
— Mas que raio vieram cá fazer os homens do Valdemar ao Algarve?

Sabia bem o algarvio que aqueles homens não eram simples forasteiros. Tratava-se, com efeito, da escolta régia que viera buscar Leonor Afonso, filha de D. Afonso II, prometida em matrimónio ao rei Valdemar II da Dinamarca – à semelhança da tia, Berengária, que se entregara a Valdemar I, trocando o sol ibérico pelos rigores escandinavos.

A conjectura foi interrompida por um dos gigantes, que se lhe acercou e lhe estendeu uma pá retráctil, daquelas vendidas em lojas de bricolage. Logo outros dois se aproximaram, suando sob o peso de uma caixa que depuseram a escassos passos. Por gestos, indicaram-lhe que cavasse. O entendimento foi demorado, o diálogo gestual, repleto de mal-entendidos, e o espaço exíguo provocou mesmo ferimentos entre os bárbaros, cujos gestos desajeitados com armas nas mãos causaram amputações acidentais. Mas ninguém se queixava; eram vikings.

De súbito, um deles interpelou Fernão num português moderno e limpo. Estranhamente, entenderam-se melhor nessa língua alheia do que com o balbuciar nórdico.

A princesa, diziam, tardava nos preparativos. Há quarenta dias hesitava no traje mais adequado. Cansados da espera, os guerreiros decidiram entreter-se numa incursão a Sevilha, onde pretendiam desmembrar alguns mouros ao serviço do Emir Abd al-Rahman II. Mas, receosos de perder o tesouro destinado à troca pela princesa – exigência do nosso D. Afonso –, resolveram escondê-lo nas serranias algarvias, nas proximidades da baía de Lagos.

Fernão, amaldiçoando a vida, cavou dez palmos de terra e lá depositou o cofre. Satisfeitos, os vikings retornaram à marina, embarcaram nos seus drakkars e, navegando por entre traineiras abarrotadas de sardinha, fizeram-se ao largo rumo a Al-Andaluz.

JAFÉ

Séculos volvidos, outro homem, de nome Jafé, sonhou com um sítio de terra batida e pinheiros raquíticos, onde uma cruz marcada com seixos anunciava coisa escondida. Como fora possível ao seu espírito visualizar tais pormenores sem jamais ali ter posto o pé, nem ele o soube dizer.

Emudecido por tal sonho, traçou no mapa a configuração das árvores e os contornos da encosta, até que a topografia mental coincidiu com um local que conhecia vagamente: o cabeço do Espinhaço do Cão. Tomado de febre, partiu de madrugada, picado pela esperança de se tornar notável como Schliemann em Troia ou Champollion no Vale dos Reis.

Alcançado o local, já com o sol a pino, cavou sem método nem critério, como quem revolve a terra à procura de um sentido para a própria existência. E, para seu assombro, a enxada embateu em algo duro: um cofre de madeira negra, forrado de metal oxidado. Abertas as trancas com a fúria de quem espera há séculos, descobriu uma miniatura de caravela em talha dourada, uma pena com penas e um codicilo manuscrito com tinta ferrogálica em papel de trapo. O texto, entre as linhas esmaecidas e arabescos de um português castiço, relatava o saque a uma nau castelhana no século XVII, executado por um certo capitão Rafael dos Mares do Sul, homem cuja reputação navegava à frente das velas.

Levado pelo encantamento, Jafé quis crer-se herdeiro da descoberta – e, por extensão, da glória do capitão. Exibiu o achado a um arqueólogo da sua confiança, homem de sobrancelhas espessas e olhar de betoneira. Este, após breves análises, declarou o conjunto "um embuste óbvio, de fabrico novecentista e intenção lúdica", recomendando o seu envio para um museu etnográfico ou, melhor ainda, para a lareira.

Jafé, ferido no orgulho, recolheu a caravela e o codicilo e meteu-se em casa. No serão dessa noite, redigiu uma longa carta ao Ministério da Cultura, onde esgrimava argumentos em defesa da autenticidade do achado e da nobreza do seu próprio discernimento.

O documento jamais obteve resposta. Porém, certa manhã, ao acender a lareira, encontrou dentro da chaminé uma pena igual à do cofre. Não estava chamuscada.


O PIRATA

Dizem que ninguém o viu chegar. Terá vindo de manhã, envolto em nevoeiro, descido de um coche anacrónico, arrastando uma perna e uma mala de couro. Vestia-se como os piratas dos almanaques oitocentistas: casaca bordada, tricórnio, pala no olho e uma espada embainhada com sinais de ferrugem. Apresentou-se como capitão Raposo, navegador de curso incerto e espírito tresmalhado.

Instalou-se na estalagem da Ribeira, onde pediu, com voz cavo e sotaque flutuante, "um quarto com vista para os séculos passados".

De dia, perambulava pelas falésias, onde soprava numa flauta de cana, extraindo sons reminiscentes de outros mares. À noite, escrevia com esmero num caderno de couro, por vezes rindo alto, por vezes chorando de modo convulso. Os habitantes evitavam-no, temendo-lhe o olhar baço e os gestos de feiticeiro.

Certa feita, foi visto a entregar um envelope selado a um rapazito que trabalhava no correio. "Entregue isto a quem souber escutar", disse-lhe. O rapaz, após breve hesitação, obedeceu, lançando o envelope na caixa de correio destinada a "Outros Destinos".

O pirata desapareceu no dia seguinte. No seu quarto, deixara apenas um mapa desenhado com tinta roxa, uma garrafa de rum pela metade e uma tábua de madeira gravada com runas desconhecidas. A estalajadeira jurou que aquela tábua não pertencia ao inventário do mobiliário.

Anos depois, o neto do rapaz do correio – agora ele próprio carteiro – encontrou entre papéis esquecidos aquele estranho envelope. A carta que continha era uma narrativa, quase um conto. Falava de um tesouro escondido em terra firme, guardado não por armadilhas ou serpentes, mas pelo tempo e pelo esquecimento. No final, a frase: “Se achaste isto, já és parte da lenda. Não a negues.”


EPÍLOGO

O homem que lera o manuscrito na soleira da casa devoluta sentiu um arrepio a percorrer-lhe a espinha. Voltou a embrulhar os pincéis, as folhas e a sacola, e tornou a colocar tudo na fenda aberta pela tábua erguida. Voltou a assentar a madeira, como quem encerra um sarcófago.

Ao sair, viu que a porta caída fora recolocada. Ninguém nas redondezas.

Não mais voltou àquela casa.

Mas, por vezes, ao passar em frente ao portão, parece-lhe ver, por entre os vãos, um vulto de tricórnio, sorrindo com o único olho visível. Outras vezes, ouve o som longínquo de uma flauta, vindo de parte nenhuma. E, por mais que tente, nunca consegue lembrar-se se aquilo tudo lhe aconteceu mesmo – ou se apenas leu a história nalgum lugar.

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“O que não se enterra apodrece. O que se esconde transfigura-se.”
— Máxima do Grémio dos Leitores Silenciosos

A narrativa que se acaba de concluir não é, como parecerá aos espíritos lineares, mero conto com sabor a mofo romântico ou fábula com inclinação para o delírio. Não. Trata-se, antes, de um mapa velado — e, como tal, não se lê com os olhos do rosto, mas com o fulgor da memória que não nos pertence.

A casa onde tudo principia, e onde tudo talvez acabe, é mais do que um cenário. Representa o Templo Interior, o lugar onde o homem se depara com os estratos esquecidos da própria alma. A tábua que se ergue — aparentemente por acaso — corresponde àquela súbita epifania que, uma vez surgida, jamais pode ser deserguida. É o levare tabulam dos alquimistas interiores: o acto de destapar aquilo que o tempo cuidou em sepultar, por piedade ou prudência.

Cada personagem desta narrativa — seja o obcecado Jafé, o espectral Capitão Raposo ou o próprio carteiro em segunda geração — não é senão uma emanação do Anima Mundi, jogando papéis sucessivos no teatro iniciático. Eles são os vigilantes, os transmissores, os desorientados e os reencontrados. São os actores de uma mesma peça que se repete em variações subtis, como fazem os rituais nos conventículos esparsos do espírito.

O codicilo encontrado no cofre, a pena intacta na lareira, a carta endereçada “a quem souber escutar”: todos são fragmentos do Verbo perdido. O verdadeiro leitor saberá que estas coisas não pretendem ser explicadas, mas antes reconhecidas. Porque quem verdadeiramente lê não busca sentido — busca ressonância.

Aparece ainda, neste relato, a figura do Pirata. Figura esta que, em todas as tradições ocultas, representa o espírito herético, o que navega fora das rotas permitidas, o rebelde da ordem constituída. Ora, não se trata aqui de um ladrão de mares, mas de um contrabandista de símbolos, trazendo do Atlântico invisível da alma os objectos perdidos da humanidade: mapas, palavras, ruídos de flauta, tábuas com inscrições esquecidas. Ele é o mensageiro que não exige crença, apenas disponibilidade.

A tábua levantada, portanto, não encerra apenas um fundo físico — encerra um abismo ontológico: a constatação de que por baixo do chão onde caminhamos dorme ainda uma história não contada, uma memória rejeitada, um sopro que insiste.

Permita-se o leitor não compreender. Melhor ainda: permita-se suspeitar.

E ao fechar esta última página, pergunte-se — mas com voz baixa, pois as paredes ouvem —: Que tábua levantei eu, ao ler isto?

Francisco Castelo
Na sala das 3 das Sombras



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