Nunca gostei de viajar. Irrita-me a viagem em si, esse interminável suplício de transbordos, malas mal fechadas, bilhetes perdidos e itinerários que se desfazem à primeira rajada de vento ou à primeira greve ferroviária. Irrita-me a logística labiríntica, o carregar de bagagens com a mesma alegria com que se transportam sacos de cimento, o andar de camioneta, barco ou carruagem como se o mundo fosse um carrossel em brasa. Irrita-me tudo: os solavancos que me deslocam as vértebras, o calor que me escorre pelas costas, o frio que me talha os ossos, a vizinha tagarela que nunca ouviu falar de silêncio e o vizinho que ressona como se tivesse motores a jacto nas narinas. Não gosto de viajar! Nunca gostei.
E, no entanto, viajo. Mas a minha viagem é outra — mais íntima, mais subversiva. Ao contrário dos que se lançam ao espaço em busca de paisagens e souvenires, eu navego no tempo. Há sessenta anos que o faço, sem bilhete de ida nem de volta, sem bagagem de mão, mas com as mãos cheias de tempo. E o que encontro nas ruas dos meses, nas esquinas dos anos, nas avenidas das décadas não é menos surpreendente, nem menos tocante, do que o que encontra o andarilho de aeroportos e terminais rodoviários.
Também tiro fotografias. À memória. À mudança. Ao espanto. Faço selfies interiores — retratos do viajante que fui, do que me tornei, do que ainda serei — registos fugazes de mundos que me atravessam e que eu próprio atravesso.
Enquanto os nómadas do globo se maravilham com outras gentes, outras línguas e outros temperos, eu vou maravilhando-me com a constante metamorfose que opera em mim e nos outros: nos rostos que envelhecem devagar, nos gestos que se suavizam, nas idéias que, como a roupa, se tornam mais largas e mais confortáveis.
O lugar que ocupo no Universo neste instante não é o mesmo que ocuparei no minuto seguinte. O planeta avança, o sistema solar roda como um velho gramofone celeste, a galáxia baila nos salões do infinito. E dentro de mim, milhões de células morrem com a dignidade de velhos generais e outras nascem com a inconsciência dos recém-chegados. O que sou agora não é exactamente o que fui — nem será o que serei. Mas sou.
E se é certo que todo o viajante carrega rugas como troféus, também é certo que o espírito pode permanecer jovem como um escuteiro teimoso, sempre a querer descobrir mais um caminho, mais uma verdade, mais uma falácia.
Sem sair do corpo, sem sair da cadeira, sou viajante. Um nómada parado. Um andarilho imóvel. Um turista do tempo, com estadia vitalícia neste velho hotel chamado “Eu”.
P.S.: O espaço sideral? Nem pensar. Aquela imponderabilidade dava-me cabo do estômago e dos nervos. O silêncio absoluto — um insulto ao meu hábito de resmungar. E a radiação? Valha-me Deus, nem um bronzeado decente me deixaria! Prefiro a gravidade da vida ao vazio cósmico. Ao menos aqui, ainda se ouve um bom fado e serve-se um copo de tinto.
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