Desejando, como todos os poetas desgraçadamente lúcidos às três da manhã, alcançar uma epifânica e enriquecedora valorização literária — talvez digna de nota de rodapé num suplemento cultural de domingo —, decidiu partir para a acção. Sem hesitação nem piedade, assassinou quatro advérbios terminados em “-mente” que se arrastavam languidamente pelo parágrafo. Seguiram-se três adjectivos, demasiado opinativos e inchados de vaidade: foram estrangulados com os próprios hífenes. Dois eufemismos tentaram escapar disfarçados de decoro, mas foram capturados e sumariamente estropiados. Uma metáfora, viúva recente de qualquer sentido, foi deixada a carpir entre as linhas.
Não satisfeito — pois a insónia é bicho faminto e a lucidez, nesse estado, transforma-se em arrogância com diploma —, arrancou os olhos a uma sinestesia que ousava misturar cheiros com tons de azul pavão. Depois, sem sequer olhar para o espelho da gramática, atropelou um pleonasmo que passava inocentemente com um “subir para cima” na mão. O impacto foi brutal. Nem o advérbio “ainda” conseguiu testemunhar com clareza.
Cansado, e com a adrenalina tipográfica a dissipar-se, suspendeu o curso da mão sobre a folha. Olhou para o que restava da frase, agora um campo de batalha onde sufixos estrebuchavam e conjunções clamavam por socorro. Imprudente — ou talvez vencido por um tédio estilístico de proporções literárias —, deixou escorrer da caneta um borrão de tinta. Este, soberbo e tirânico, alastrou-se com a presunção de quem sabe que será interpretado como símbolo de qualquer coisa. Tornou-se um abcesso convexo, distinto, negro e brilhante na superfície plana e alva do papel. Um verdadeiro tumor semiótico.
Depois, largou a pena como quem abandona a arma do crime e voltou para a cama, onde o sono o esperava com um misto de resignação e sarcasmo. Deitou-se sem remorsos — afinal, era um psicopata de morfemas reincidente, conhecido nos círculos da linguística como “o Desmembrador do Discurso”.
E, no silêncio do quarto, ainda se ouviu um sussurro: “A aliteração foi a próxima.”
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