Lisboa e Lagos têm várias coisas em comum — algumas delas até respeitáveis. A principal terá sido o poderoso impacto do terramoto de 1755, que, com imparcialidade sísmica, arrasou palácios e barracos sem olhar a títulos ou brasões. Mas, além desse detalhe geológico de peso, ambas ostentam também um estranho orgulho em possuírem as mais antigas Misericórdias do país. Curiosamente, continua por apurar, com método e coragem, se a de Lisboa será mesmo mais antiga do que a de Lagos — o que, como se sabe, é tema de debates acalorados em certos círculos... especialmente nos que usam barrete roxo e têm gosto por procissões e protocolos.
E, como se tudo isto não bastasse, surge ainda uma coincidência toponímica deveras pitoresca: ambas albergam, nas suas ruas e avenidas, a evocação de um espectro conhecido por Frei Miguel Contreiras — uma alma de tal modo esquiva que nunca ninguém viu, mas cuja presença etérea, pintada e bordada, paira nas bandeiras, nas caixas de esmolas e até nas placas de sinalização.
Outros historiadores, com pouco respeito pelos mitos úteis, já haviam alertado para a aldrabice. E em Maio deste ano, o arqueólogo e professor de História Francisco Fernandes voltou à carga, resumindo assim o imbróglio:
«Frei Miguel Contreiras: o frade santo que tem uma Avenida em Lisboa mas que nunca ninguém viu.»
Ora aí está um epitáfio mais do que digno para a eternidade. Mas passemos ao essencial: quem em Lisboa atravessa Alvalade com a nobre intenção de se deslocar da avenida de Roma à avenida Almirante Gago Coutinho, fá-lo pela avenida Frei Miguel Contreiras, onde se situa, para cúmulo da ironia, a estação ferroviária Roma-Areeiro — talvez o único comboio do mundo com paragem num purgatório.
Mas quem terá sido este vulto tão relevante que mereceu imortalidade em letras metálicas numa artéria da capital? Que feitos inapagáveis terá legado à História de Portugal? Que gesta gloriosa nos escapou nos compêndios?
Segundo as versões mais caridosas da historiografia, tratava-se de um frade espanhol do século XV, da Ordem da Santíssima Trindade — já se vê que a modéstia nacional não bastava para fundar instituições, era preciso um toque de castelhana beatitude. Andava pela Lisboa quinhentista com um burro e um anão (que, felizmente, não ficaram imortalizados na toponímia), pedindo esmolas para os pobres e recolhendo méritos celestiais que o levaram a ser prior do convento da Trindade, onde foi piedosamente sepultado… até que o terramoto de 1755, numa última e inadvertida irreverência, lhe fez desaparecer os ossos sem deixar rasto.
Mas eis que o seu acto mais notável terá sido, alegadamente, o de ser confessor da rainha D. Leonor — aquela mesma que casou com o seu primo D. João II (os Habsburgos que nos desculpem o plágio genealógico) — e de a ter inspirado, entre ladainhas e murmúrios ao ouvido, a fundar a primeira Santa Casa da Misericórdia. Que bonito. Que tocante. Que conveniente.
Aliás, Frei Miguel é elevado a primeiro provedor da Misericórdia de Lisboa, surgindo retratado em telas, livros, bandeiras e provavelmente em visões mais exaltadas. Uma glória póstuma que qualquer político actual invejaria.
Contudo — e aqui entra a cruel luz da investigação histórica — parece cada vez mais certo que Frei Miguel Contreiras é, simplesmente, uma das maiores patranhas documentadas do nosso património devocional. Vários investigadores, com destaque para Ivo Carneiro (Faculdade de Letras da Universidade do Porto) e Isabel Sá (Universidade do Minho), concluíram que não há qualquer registo histórico anterior a 1574-75 que o mencione — o que significa, por outras palavras, que o frei andou 70 anos no mundo sem deixar um único rabisco de existência. O que, convenhamos, nem para santo invisível é recomendável.
Como ironiza Ivo Carneiro, “o que existe documentalmente sobre frei Miguel não chega sequer para fazer uma certidão de óbito”. E quando falta o óbito, costuma faltar também a vida.
O autor desta piedosa invenção terá sido Frei Bernardo da Madre de Deus, esse sim um trinitário a sério e de carne e osso, que em 1574 apresentou à Misericórdia de Lisboa um pedido para que a imagem do imaginado Frei Miguel voltasse a figurar nas suas bandeiras e caixas de esmolas. O pedido foi inicialmente negado, mas lá acabou aceite — após um processo em que apenas quatro testemunhas (o número mágico da credulidade) afirmaram ter “ouvido falar” do frade. Foi o suficiente para abrir a porta à criação da biografia hagiográfica que hoje nos chega como verdade sacrossanta.
E porquê tal esforço inventivo? Motivos puramente espirituais, evidentemente: uma profunda crise financeira da Ordem da Trindade, ameaçada de extinção em Portugal, já que o seu papel de resgatar cativos cristãos — até aí bastante lucrativo — passara a ser disputado pelas Misericórdias, agora mais ricas e prestigiadas. Só um milagre as poderia salvar. E foi então que Frei Bernardo de Madre de Deus, com notável engenho e alguma licença poética, operou esse milagre editorial: criou um fundador de Misericórdias e atribuiu-lhe as graças necessárias para dar à Ordem a aura e a relevância de que carecia.
A história foi aprofundada após a união ibérica de 1580, como forma de sublinhar — com fina diplomacia — a influência benfazeja de Castela sobre Portugal, atribuindo a um frade espanhol (claro está!) a fundação da mais importante instituição de caridade do reino.
Ora, se se restituísse a verdade histórica e se devolvesse Frei Miguel ao mundo imaginário de onde nunca devia ter saído, cairia por terra a “prova” da precedência fundacional da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa sobre a de Lagos (?). E, como se sabe, isso seria quase tão herético como sugerir que os Pastéis de Belém foram inventados em Olhão.
Mas, claro está, repor a verdade mexeria com interesses instalados — não só lisboetas, mas também eclesiásticos, simbólicos e até turísticos. E, por isso mesmo, é pouco provável que alguém queira mudar o que, afinal, sempre funcionou tão bem como fábula. Afinal, como dizia o outro, se a mentira for piedosa… até pode dar nome a uma avenida.
Interessante, não?
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