Segurava-a com a mão esquerda e dava corda com a direita, e de cada vez a
música era diferente e a vida mudava. Numa, a personagem era um coxo faminto,
noutra era um carpinteiro no seu trabalho, e noutra ainda era um empregado
bancário a contas com o desfalque que dera no banco, ou o padeiro que tentava
dormir de dia, sem sucesso, incomodado pelo barulho do martelo pneumático usado
na obra clandestina do prédio contíguo. O padeiro até sentiu a terra, as pedras
e o pó caindo-lhe em cima. Era o prédio que se desmoronava na ausência dos
pilares entretanto suprimidos para caber mais um quarto?
Não, mudada a música, era o terramoto de 1755 que engolia meia Lisboa, e,
depois de nova corda volteada, já era Pombal a castigar os jesuítas, os
verdadeiros donos do Paraguai, por se terem oposto ao tratado em que o rei de
Espanha cedia algumas partes daquele território ao rei de Portugal, D. José, e
terem instilado a revolta das populações que deveriam prestar vassalagem ao
domínio luso. Por essa razão, e outras mais, a Companhia de Jesus foi expulsa
de Portugal. Assim o escreveu Voltaire em ‘Précis du siècle de Louis XV’.
E tudo isto se ouvia agora, misturado com a música que saía da caixa, como um
disco de gramofone cuja agulha crepita nas espirais envelhecidas do vinil
empenado. COMPRE AGORA, NÃO UMA NEM DUAS, MAS TRÊS MANTAS DE LÃ DE OVELHA DA
SERRA DA ESTRELA, PELO PREÇO DE UMA! Ouvia-se do megafone do homem esquelético
alcandorado na plataforma da camioneta que também era a caixa de música. Com
aquele som estridente, ainda saía da caixinha o odor dos frangos assados
mesclado com o das farturas fritas, gordurosas, tudo embrulhado no ruído geral
da feira.
Um novo volteio na corda energética e a música muda para a marcha fúnebre de
Mozart. Então, a personagem vê-se dentro de um esquife, e em volta desfilam
silhuetas que se desvanecem ondulantes na inclemente canícula do Verão que
aquece o quarto e o acorda do sono e do sonho.
Da caixa de música tiro uma bolsa de chá, e ela continua a tocar e a realidade
a mudar.
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