[publicado em CRÓNICAS DA PESTE, Abril 2022]
À sua ténue claridade se bebericam uns cálices de aguardente e se fumam uns
cigarros enrolados vagarosamente.
É com este fogo por testemunha, e com os olhos postos nele, que se discutem as
coisas do dia e se trocam notícias e novidades trazidas de outros com quem se
partilhou a jornada ou com quem, apenas, se cruzou pelo caminho. E a conversa
que nasce não é avultada nem apressada, como se, sendo-o, o fogo se consuma mais
lesto e dê por findo o momento de balanço e descanso do dia, o interregno para
a deita vagarosa em leito de ferro, colchão de fatanas, lençóis de linho cru e
mantas de retalhos que não protegem dos monstros e demónios dos sonhos e
pesadelos que se geram nas noites serrenhas.
E a atenção hipnotizante dada ao lume, às suas brasas e chamas, frequentemente
descamba em miragens de luz e teatros de sombras de que o cérebro vai
desenterrar, não sei onde, significados estranhos e enigmáticos.
Observo a dança das chamas que se desprendem dos madeiros ardendo lentamente
num colorido de amarelos vivos e intensos rubros, e as cornucópias de fumo ralo
que ascendem para o escuro interior da chaminé; e a luz que irradia formando
uma clareira que vai morrer nas margens daquela escuridão que engole o resto da
casa, negrume tenuemente interrompido por pequenos clarões refulgentes nas
vidraças das janelas - reflexos da lareira, ou outras figuras endiabradas,
talvez fantasmas daquelas - denunciando a existência das paredes e do mundo de
breu para lá delas.
Volto ao fogo que é só um mas que se repete em níveis diferentes, consoante
nasce de um tronco de baixo ou de outro nesse empoleirado, onde dançam
estranhas figuras contorcendo-se, escancarando a boca ou espetando o cu em poses
grotescas lembrando as figuras da magnífica pintura "O Combate entre o
Carnaval e a Quaresma" de Pieter Brueguel, antecessora da boa Banda
Desenhada do século XX. Nesta pareidologia das lavaredas identifico o homem
gordo empunhando um leitão no espeto; e vejo também o tocador de guitarrinha
com a sua barriga descomunal e uma panela enfiada na cabeça, que segue em
procissão musical com outros figurantes.
De repente, porque tudo acontece no ápice em que cada chama se contorce,
oscila, tremula, são outras as figuras que ali se formam; mulheres fora dos
padrões estéticos vigentes, ou seja isentas da beleza que a moda e a cultura
ditam. Algumas, até, com deformidades físicas, por ali parecem saltitar. Há-as
gordas e rechonchudas mas a maioria são magras, muito esguias e ondulantes,
evocação de um cenário sinistro, talvez um ritual de magia negra com bruxas
sacudindo-se visceralmente numa espécie de dança.
Subitamente, surge de permeio a cana de soprar o fogo, que alguém segura para
atear um extremo da lenha, para lá da trempe, onde já desaparece a
incandescência da madeira substituindo-se pelo enrugado e negro carbonizado. E
do sopro que dá fôlego à combustão, logo surgem novas chamas e diferentes
vultos extravagantes que me prendem àquele acontecimento com que o dia termina
nas casas rurais humildes.
Vou dormir com tais figuras na cabeça, imaginando a continuação dos seus
bailados bizarros. E então chegam os sonhos povoados de seres também
fantásticos e extravagantes. Alguns deles são incorpóreos, apenas intuições de
existências fátuas como os intervencionistas das redes sociais que produzem
mais bruá neurótico do que críticas pertinentes, que promovem o acessório a
fundamental e substituem os problemas importantes por fait-divers e matérias de
lana-caprina. Esses, como os diseurs de coisas abissalmente óbvias,
desvanecem-se com a chegada das silhuetas de animais pré-históricos, auroques
em debandada, rinocerontes pujantes perscrutadores da vizinhança, serenos
irrascíveis tal é a rapidez da mutabilidade do seu humor.
Em seguida são as formigas; que coisa impressionante! Exércitos de formigas num
carreiro infinito, marchando sem parar, todas iguais, e mais, e mais... vejo-as
em plano geral, picado, como se um drone voador captasse a cena, ou em
close-up, como se alguém empunhasse uma lupa sobre os fantásticos seres
minúsculos. E a sensação causada pela linha infinita de insectos caminhando
ordeiramente, inexoravelmente, é a de que o planeta se esvai em formigas.
Agora, vejo imagens do que parece ser uma cena bíblica, o apedrejamento de um
blasfemo levado a cabo por um grupo de mulheres que fingem ser homens, e que na
realidade são homens porque afinal estou a rever mentalmente as personagens do
filme 'A Vida de Brian' dos Monty Pyton, em que a maioria das mulheres do filme
são interpretadas por homens. Estão confusos? Então e eu, que sonho isto tudo?!
Estas imagens incendiárias em sucessão recordam-me, não sei porquê, uma
socialite Margarida que se dizia virgem e defendia a castidade até ao
casamento, tendo manifestado no seu blogue a recusa em ter relações sexuais que
durassem uma noite, uma semana ou um mês. Incrédulo, pergunto-me como é que
ninguém lhe explicou que aquilo não dura esse tempo todo?!
Tudo isto leva-me à pergunta: Que riso podem suscitar estas imagens burlescas e
ridículas, numa cultura que aboliu, como disse Baudelaire, a gargalhada obtusa
e desbragada e adoptou o riso breve e contido do homem culto que passou a olhar
as coisas com sobranceria e distanciamento?! Não sei. Afinal de contas a minha
grande preocupação é evitar mijar na cama depois desta inflamada brincadeira
com o fogo.
Bocejo, ajeito a almofada, e encomendo-me ao sono.
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