Um prato de vazo de flores, de cor vermelho-tijolo, serve de fruteira com dois limões, uma maçã, uma pêra de partir dentes e uma banana enorme, madura e carregada de pesticidas da América. Ao lado, um frasco de mel para adoçar os chás e algumas garrafas de água das montanhas do Norte. Um afiador de lápis eléctrico e um furador grande, sem uso, aguardam a ferrugem do ar e do tempo, completando o rol dos objectos existentes sobre o aparador. Na mesinha contígua descansa em silêncio uma máquina de escrever eléctrica, creme-encardida, dos anos noventa.
Prime, freneticamente, as letras no teclado de polímero negro, oscilando cadenciadamente a cabeça, e as palavras vão surgindo no ecrã branco, perfiladas como soldados em formatura, temendo a batalha que a publicação do texto iniciará.
À ordem da palavra COMANDANTE, duas palavras METRALHADORA disparam milhares de RETICÊNCIAS contra um destacamento de EMES, decepando-lhes as pernas e reduzindo-os a ÚS e ENES, que gatinham sofridamente sobre um amontoado de corpos de IS decapitados pelos poderosos HÍFENES, projectados momentos antes pelas forças sitiadas.
Do campo de batalha nem um gemido, um suspiro ou um ai se ouve, porque as letras não pertencem a essa condição sonora. Apenas o cheiro nauseativo a tinta de impressora ensopa o campo de morte daquela selvajaria letrística — um enorme jornal em formato standard broadsheet.
Quase na borda da folha, praticamente em território da margem, um AGÁ minúsculo — que até podia ser confundido com um QUATRO — serve de cadeira a um CAPA exausto que, sozinho, defrontou um pelotão de ÁS e os reduziu a VÊS invertidos, subtraindo-lhes a haste central. Claro que o QUATRO só poderia estar ali se, para esta batalha, tivessem sido mobilizados os números — coisa impensável, pois esses falam uma língua diferente, composta por um exército interminável de ZEROS e UNS, enfileirados como rosários para rezas em código binário, a única língua inteligível pelo demiurgo criador: esse Grande Matemático do Universo.
Dois dedos em movimento transportam o ‘letricínio’ para a folha seguinte, uma página de anúncios onde o azedume opõe um reclame de fraldas a outro de óculos, acidentalmente quebrados pelo bebé bochechudo que louva aos céus a faculdade de absorção do produto a si destinado. O enorme Ó, que representa o olho da notícia oftálmica, desprende lágrimas em forma de vírgulas, que caem copiosamente, mais abaixo, dentro de uma caixa de bordadura negra, e, não encontrando saída, contorcem-se e esbarram nos limites daquela masmorra gráfica.
Para o ser humano, o medo é uma sensação de receio em relação a uma pessoa, uma situação ou uma coisa; mas para as letras, o medo concretiza-se na ameaça da borracha que as pode apagar ou naquela tinta branca que as camufla no seu chão de papel, ali desaparecendo para sempre.
Se aos humanos são dois os tipos de medo que os atacam — um resultante da ameaça física, cominação imediata à existência do indivíduo, e outro advindo dos pensamentos sobre o desconhecido porvir —, sendo o primeiro partilhado com as letras, do segundo não têm estas que temer, por não deterem sentido de futuro. Há quem afirme que tal condição está relacionada com o facto de as letras viverem num universo bidimensional, ao invés dos seres, que habitam um sistema mais complexo, tridimensional. Nada sei disso, por não ter aproveitado as lições sobre Espaço e Tempo.
Como não sofro de neofobia alimentar, o meu medo único sou eu — ou seja, as letras E e U.
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