Pretendia fotografar um veleiro a sair para o mar e, por isso, seguia pela marginal junto ao rio quando o deparei, com um cachimbo pendurado ao canto da boca, certamente apagado, pois não exalava uma réstia de fumo. Olhava o infinito — um infinito próximo, ali a uma dezena de metros, no ponto da superfície das águas onde mergulhava a linha de pesca. A cana, encostada ao paredão, aguardava o abanão do peixe aflito, que abocanhara o anzol na avidez de engolir o apetitoso berbigão.
Então Sócrates virou a cabeça, fitou-me serenamente, como que a confirmar o que eu era, tirou o cachimbo da boca e disse:
– Como toda ‘máquina pesada’, a Função Pública é ninho do suicídio da criatividade, do engenho e do mérito porque, como o provam as sociedades ditas socialistas, anulada a competitividade e os benefícios pessoais do trabalho árduo, todos os que se refastelam na segurança que o Estado fornece cultivam a mediocridade e o ócio, não produzindo nada extraordinário. Garantido o provimento da gamela igualitária, não há lugar ao engenho afiado pela necessidade; perde-se a criatividade, a competição e a inovação, e instala-se o imobilismo, a mediocridade e, depois, a decadência.
– Mas o declínio não afecta apenas essas sociedades. É coisa que também se verifica nas democracias ocidentais, sociedades da fartura, em que a vida fácil afasta a necessidade de aguçar o engenho para ultrapassar dificuldades, tornando os cidadãos preguiçosos e incapazes, dispensando mesmo o apoio tradicional das instituições milenares — de que a família é o exemplo mais evidente, as religiões e as filosofias, que no passado moveram vontades, sociedades e culturas.
– Nas actuais sociedades autoritárias como a Rússia, a China e outras, os modos de pensar arcaicos são mantidos em nome da defesa do sentimento nacionalista e dos costumes e tradições que devem ser imutáveis. Na realidade, não são mais do que instrumentos de conservação do poder autoritário, ferramentas para o controlo e vigilância dos cidadãos.
– Vedada a livre escolha de ideias, filosofias e modos de vida, esses regimes obrigam o indivíduo que aspira àquilo que não tem — é da natureza humana — ao uso do subterfúgio, ao recurso ao artifício e à arte da dissimulação, camuflando em alegorias e metáforas o seu discurso criativo. Assim aconteceu em todas as sociedades opressivas nos momentos mais deploráveis da sua história.
– Os humanos só vivem bem sob tensão, em permanente desequilíbrio material e emocional. É o que demonstra a História das civilizações do passado, que viveram essa estagnação, esse declínio, após atingirem um nível considerável de satisfação e bem-estar social e económico.
– Embora muitos acreditem que a História se repete eternamente, isso não acontece por fatalidade do destino, por a vida se tratar de uma enorme roda dentada que, ao fim de cada volta, regressa ao dente de partida; mas sim por não darmos a devida atenção aos ensinamentos que os erros oferecem e voltarmos a errar repetidamente, cometendo equívocos graves semelhantes aos do passado. E por isso repetimos a História.
– No mundo dos seres irracionais, movidos exclusivamente pelos instintos básicos da sobrevivência assentes na alimentação e na reprodução, tal coisa não espanta; mas no mundo racional dos humanos, isto é sinónimo de estupidez. E, se é assim que a massa humana age, a multidão não pode deter o poder de tomar decisões.
– A Democracia não serve aos humanos porque a maioria dos indivíduos não quer participar nela, e se participam, é pontual e artificiosamente, porque a isso são obrigados por forças ou interesses exteriores a si próprios. Claro que há excepções, mas as minorias não mudam o paradigma das sociedades.
– A Democracia apenas serve uns quantos que dela se servem perante a indiferença de uma maioria apática e à incapacidade de várias minorias incultas e desinformadas. No meio, uns tantos lúcidos angustiam. A alternativa viável à Democracia é a Sofocracia, porque só poderá governar bem quem contempla a ideia de Bem: o filósofo.
E calou-se, voltando a observar a linha que mergulhava na água, esperando o peixe picar.
Eu fiquei sem palavras e segui caminho em busca do veleiro, deixando o filósofo com o seu cachimbo apagado e o balde vazio de peixe.
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