Ócios do Ofício

 


Pretendia fotografar um veleiro saindo para o mar e por isso seguia pela marginal junto ao rio quando deparei com ele, de cachimbo pendurado ao canto da boca, certamente apagado porque não exalava uma réstia de fumo. Olhava o infinito, um infinito próximo, ali a uma dezena de metros, no ponto da superfície das águas onde mergulhava a linha de pesca. A cana, encostada ao paredão, aguardava o abanão do peixe, aflito, que abocanhara o anzol na avidez de engolir o apetitoso berbigão.

- Viva, Sócrates. Atirei-lhe, espreitando o conteúdo do balde azul que só continha água do mar.
- Oi. Respondeu-me, laconicamente, sem mover a cabeça nem despegar os olhos daquele ponto das águas onde os fixara.
Aguardei uns momentos remexendo a mente em busca de alguma coisa importante que o obrigasse a falar, mas não encontrando nada deveras original e provocador, atirei-lhe uma frase feita:
- Porcaria de vida, cada vez se vegeta mais na mediocridade.
Então o Sócrates virou a cabeça, fitou-me serenamente, como que a confirmar o que era eu, tirou o cachimbo da boca e disse:

- Como toda a ‘máquina pesada’, a Função Pública é ninho do suicídio da criatividade, do engenho e do mérito porque, como o provam as sociedades ditas socialistas, anulada a competitividade e os benefícios pessoais do trabalho árduo, todos os que se refastelam na segurança que o Estado fornece, cultivam a mediocridade e o ócio não produzindo nada extraordinário. Garantido o provimento da gamela igualitária, não há lugar ao engenho afiado pela necessidade; perde-se a criatividade, a competição e a inovação e instala-se o imobilismo, a mediocridade e, depois, a decadência.

- Mas o declínio não afecta apenas essas sociedades, é coisa que também se verifica nas democracias ocidentais, sociedades da fartura, em que a vida fácil afasta a necessidade de aguçar o engenho para ultrapassar dificuldades, e torna os cidadãos preguiçosos e incapazes, dispensando mesmo o apoio tradicional das instituições milenares, de que a família é o exemplo mais evidente, as religiões e as filosofias, que no passado moveram vontades, sociedades e culturas.

- Nas actuais sociedades autoritárias como a Rússia ou a China, e outras mais, os modos de pensar arcaicos são mantidos em nome da defesa do sentimento nacionalista e dos costumes e tradições que devem ser imutáveis. Na realidade não são mais do que instrumentos de conservação do poder autoritário, ferramentas para o controlo e vigilância dos cidadãos.

- Vedada a livre escolha de ideias, filosofias e modos de vida, estes regimes obrigam o indivíduo que aspira àquilo que não tem - é da natureza humana -, ao uso do subterfúgio, ao recurso ao artifício e à arte da dissimulação, camuflando em alegorias e metáforas o seu discurso criativo. Assim aconteceu em todas as sociedades opressivas nos momentos mais deploráveis da sua história.

- Os humanos só vivem bem sob tensão, em permanente desequilíbrio material e emocional. É o que demonstra a História de civilizações do passado que viveram essa estagnação, esse declínio, após atingirem um nível considerável de satisfação e bem-estar social e económico.

- Embora muitos acreditem que a História se repete eternamente, isso não acontece por fatalidade do destino, por a vida se tratar de uma enorme roda dentada que ao fim de cada volta regressa ao dente de partida; mas sim por não darmos a devida atenção aos ensinamentos que os erros oferecem, e voltarmos a errar repetidamente, cometendo equívocos graves semelhantes aos do passado. E por isso repetimos a História.

- No mundo dos seres irracionais, movidos exclusivamente pelos instintos básicos da sobrevivência assentes na alimentação e na reprodução, tal coisa não espanta; mas no mundo racional dos humanos, isto é sinónimo de estupidez. E se é assim que a massa humana age, a multidão não pode deter o poder de tomar decisões.

-A Democracia não serve aos humanos porque a maioria dos indivíduos não quer participar nela, e se participam é pontual e artificiosamente porque a isso são obrigados por forças ou interesses exteriores a si próprios. Claro que há excepções, mas as minorias não mudam o paradigma das sociedades.

- A Democracia apenas serve uns quantos que dela se servem perante a indiferença de uma maioria apática e a incapacidade de várias minorias incultas e desinformadas. No meio, uns tantos lúcidos angustiam. A alternativa viável à Democracia é a Sofocracia porque só poderá governar bem quem contempla a ideia de Bem, o filósofo.

E calou-se, voltando a observar a linha que mergulhava na água, esperando o peixe picar.
Eu fiquei sem palavras e segui caminho em busca do veleiro, deixando o filósofo com o seu cachimbo apagado e o balde vazio de peixe.


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