Louvado
seja o senhor de todas as contradições, príncipe do paradoxo, sopro imemorial
que desfaz as costuras da razão, esse lume que bruxuleia no fogão do delírio.
Que importa que o mundo seja lógico, ordenado, previsível? Acaso não é no
espanto, no desconcerto, no gesto inútil e na palavra vazia que o espírito
verdadeiramente se expande?
Num
tempo em que tudo se mede, se pesa e se calcula, em que os homens se curvam
diante de algoritmos e fórmulas, o Absurdo permanece incalculável, ileso à
razão, invencível e… gratuito. É ele quem nos diz que uma pedra se pode
apaixonar por uma gaivota, que um sapato pode sangrar ou que um poema pode
brotar de um muro de alvenaria. E porquê não? Quem ousa ditar o que é ou não é
plausível num Universo que começou — ao que parece — com um estrondo insonoro?
A
vida é profundamente absurda: o nascimento, a dor, o amor, o desejo, a morte —
todos esses actos e estados fundamentais carecem de explicação coerente. E, no
entanto, persistimos. Construímos cidades sobre leitos de cheia, sistemas de
governo sobre impulsos primitivos, religiões sobre mistérios insondáveis.
Amamos com sofreguidão o que não compreendemos e tememos aquilo que criámos. O
Absurdo não é uma aberração da existência: é o seu cerne.
Abraçar
o Absurdo é recusar a resignação da lógica, é celebrar o grito de Munch, a
gargalhada de Antonin Artaud, a elegância estéril de uma equação insolúvel. É
afirmar que há beleza no despropósito, verdade no disparate, eternidade naquilo
que não serve para nada.
Que
se ergam, pois, templos aos sem-sentido, que se desenhem mapas sem norte nem
escala, que se escrevam livros que não podem ser lidos, que se amem pessoas que
não existem. O Absurdo não pede submissão: oferece-nos o vértice onde o
impossível se faz tangível. Que o Absurdo seja cultuado. Não como negação da
realidade, mas como sua libertação. Pois só nele encontramos o consolo de
sermos humanos, criaturas ilógicas, incoerentes, e, por isso mesmo,
infinitamente belas. Nós, as moscas e os burros.
-
- - - A Conferência entre a Mosca e o Burro - - -
(Cenário:
um campo de couves, onde crescem também relógios e postais ilustrados. Um burro
contempla o horizonte com ar meditativo. Sobre a sua cabeça poisou uma mosca,
de óculos e com um livro de arquitectura debaixo da asa.)
Mosca:
Peço licença para aterrar com dignidade filosófica. Não gosto de interromper
ruminantes em processo de contemplação digestiva.
Burro:
Está à vontade. Ultimamente tenho tido apenas pensamentos recicláveis. Aliás,
comecei a pensar em voz baixa para não poluir o ambiente.
Mosca:
Muito responsável. Já eu limitei os meus voos ao hemisfério esquerdo da
realidade. O direito está congestionado com metáforas esquecidas.
Burro:
Compreendo. Ontem mesmo tropecei numa ironia mal estacionada.
Mosca:
É o que dá viver num mundo sem sinalética emocional. Nunca se sabe quando se
atravessa uma contradição.
Burro:
Diz-me, ó mosca de asas eruditas, o que procuras neste lombo que já carregou
silêncios e enxadas?
Mosca:
Busco um lugar onde a tolice não seja punida com seriedade. Um reduto onde
possa zumbir com propósito, sem ser confundida com indecisão.
Burro:
És mosca de palavra sábia. Já eu, ando a tentar escrever um tratado sobre a
lentidão, mas cada vez que avanço uma página, a realidade corre à minha frente
e faz-me caretas.
Mosca:
Talvez devas escrever ao contrário. Começa pelo fim, como quem mastiga o tempo
pela cauda.
Burro:
Tentei, mas o fim era o mesmo que o princípio, só que de costas.
Mosca:
Isso é o que acontece quando se vive num parágrafo circular.
Burro:
Ou quando o mundo gira sem dar satisfações. Sabias que ontem o Sol nasceu do
lado errado só para me contrariar?
Mosca:
Isso é típico dele. O Sol tem um ego heliocêntrico. Eu, por mim, prefiro as
sombras, são mais humildes e não precisam de aplauso.
Burro:
Às vezes invejo as sombras. Têm sempre companhia. Eu, se não zurro, ninguém me
nota.
Mosca:
Não digas isso. O teu silêncio tem ecos que já perturbaram assembleias de
formigas.
Burro:
Fico sensibilizado. Queres ficar por aqui? Posso ensinar-te a arte de empurrar
pensamentos com a testa.
Mosca:
Fico sim. Em troca, posso recitar-te os tratados de higiene ilógica e partilhar
o segredo das janelas fechadas que dão para o infinito.
Burro:
Então estamos combinados. Hoje seremos companheiros de contemplação e
despropósito.
Mosca:
Um brinde mental a isso!
(Ambos
olham na direcção do poente, onde uma nuvem se transforma lentamente numa
cadeira que lê jornal.)
Burro:
(olhando com atenção) Aquela nuvem… estás a ver? Transformou-se agora numa
cadeira que lê o jornal ao contrário.
Mosca:
É a Cadeira-Nuvem do Boletim dos Despropósitos. Costuma aparecer ao entardecer,
quando as notícias já não querem ser verdade.
Burro:
Está a franzir as pernas como se não gostasse do que lê.
Mosca:
Provavelmente é a secção de necrologia das palavras. Há verbos que morrem de
inanição quando ninguém os conjuga há décadas.
Burro:
Sim, já me disseram que o verbo "esdruxular" desapareceu em silêncio,
sem velório, apenas com um parêntesis enlutado.
Mosca:
Triste destino. Mas, também, quem ousa esdruxular em público hoje em dia? O
mundo perdeu a coragem das sílabas desnecessárias.
Burro:
Sabes, às vezes penso que as cebolas têm mais dignidade do que nós. Elas choram
por dentro, mas sem dramatismo. Descascam-se em silêncio e nunca se
contradizem.
Mosca:
As cebolas são filósofas vegetais. Já uma vez tentei fundar uma escola de
pensamento baseada no tempero. Tive como discípulos dois alhos e um nabo
existencialista. Mas acabou tudo numa sopa.
Burro:
Toda a filosofia que termina em caldo merece a minha vénia.
Mosca:
Sinto uma leve vibração no teu corpo. Estás a pensar ou a digerir?
Burro:
Ambos. Estou a digerir uma dúvida que mastiguei de manhã: será que os postais
ilustrados sabem que nunca chegam onde prometeram?
Mosca:
Ah! Conheci um postal que se suicidou, atirando-se de uma caixa de correio por
não ter sido lido. Tinha uma fotografia de um lago que não existia.
Burro:
Pobre postal… morreu de insuficiência geográfica.
Mosca:
Precisamente. Nunca foi compreendido. As pessoas esperam que os postais sejam
felizes, coloridos, conformados. Nunca há espaço para um postal melancólico.
Burro:
Estamos a viver um tempo onde até os objectos têm de fingir entusiasmo.
Mosca:
Já pensei em inscrever-me numa terapia para insectos que perderam a fé no
ruído.
Burro:
Conta comigo, se precisares. Posso sempre oferecer-te um ouvido. Não os uso
muito. Oiço com os olhos e interpreto com os cascos.
Mosca:
Obrigada. És um burro raro.
Burro:
Sou apenas alguém que não tem pressa. E isso, nos dias de hoje, já é um
milagre.
(Pausa.
O vento traz uma gargalhada perdida de outra conversa absurda. A cadeira-nuvem
abana a cabeça e fecha o jornal.)
Mosca:
Acho que a cadeira está prestes a chover.
Burro:
Óptimo. Gosto quando os móveis mostram emoção.
Mosca:
Vamos continuar a pensar com as patas?
Burro:
Vamos. Hoje é um bom dia para não se chegar a conclusão nenhuma.
(Música
imaginária semelhante à Flauta Mágica de Mozart, mas ao contrário. O silêncio
faz uma vénia e o diálogo desvanece-se como um pensamento que se esqueceu de
nascer.)
-
Celebro, assim, os 47 anos do Jornal “O Caruncho”, um periódico mensal que exaltou o absurdo como forma estética de desconcertar a realidade. Nesse número único, feito por adolescentes irreverentes (Francisco Castelo, Carlos Dias, João Ventura, Tolentino e Fernando Almeida) destacava-se o poema de José Vieira Calado, criado de supetão à mesa da esplanada dos Dois Irmãos, a instâncias dos redactores do panfletário coleóptero:
«La
technologie du perroquet
O
automóvel dissolveu-se no asfalto
Vomitando
barris de petróleo
Como
um papagaio.»
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