Sei ler, mas sei pensar?

 


É um dos paradoxos mais saborosamente trágicos do nosso sistema de ensino: Portugal nunca teve tantas bibliotecas escolares, tantos planos de leitura, tantos manuais coloridos e plataformas digitais com acesso instantâneo à “literacia”, e, todavia, nunca como hoje tantos alunos concluíram os seus ciclos de ensino sem verdadeiramente saberem ler. Ler, entenda-se, com compreensão, com autonomia e com espírito crítico — não apenas soletrar fonemas ou passar os olhos por linhas que se evaporam da consciência assim que lidas.

Nas escolas do país acumulam-se projectos pedagógicos com nomes sugestivos e estratégias de “promoção da leitura” que fazem da literatura um produto para consumo rápido, embalado em PowerPoints e guiões de exploração. As bibliotecas, outrora espaços de recolhimento e descoberta, transformaram-se por vezes em zonas de “eventos” — animadas, é certo, mas nem sempre centradas no livro, nem sempre dedicadas à palavra.

E o resultado é, no mínimo, pungente: rapazes e raparigas que frequentam o ensino básico e secundário sem saberem estruturar um pensamento por escrito, incapazes de distinguir uma ideia central de um pormenor acessório, alheios ao valor das metáforas, dos contextos históricos ou da precisão vocabular. É a alfabetização sem literacia — como quem sabe onde se liga um interruptor, mas não compreende por que razão se acende a luz.

A ironia está em que nunca estivemos tão rodeados de livros — pelo menos fisicamente — e tão afastados da leitura como prática intelectual. Um país onde se imprime, se distribui e se arquiva, mas não necessariamente se compreende. Em nome de uma democratização da educação, confundiu-se o acesso com o entendimento, e esqueceu-se que ler é mais do que decifrar palavras: é apropriar-se do mundo.

Fazemos gala de estatísticas que apontam para o número de bibliotecas por concelho ou para a taxa de escolarização aos 17 anos, mas ignoramos serenamente o que essas mesmas escolas estão (ou não estão) a produzir: cidadãos que dominem a sua língua, que saibam interpretar um texto, redigir um argumento, defender uma ideia com clareza. Cidadãos que leiam livros inteiros — e não apenas excertos domesticados para fins de avaliação padronizada.

Mas talvez seja pedir demasiado. A literacia, ao contrário da simples alfabetização, não se ensina em fichas nem em módulos digitais. Exige tempo, silêncio, atenção — três bens que o nosso sistema educativo não parece conseguir imprimir. E exige, sobretudo, mestres que leiam — de verdade — e que saibam transmitir não apenas técnicas, mas fascínio.

Talvez um dia consigamos regressar à velha e revolucionária ideia de que ensinar a ler é, antes de mais, ensinar a pensar. Até lá, continuaremos a aplaudir bibliotecas escolares cheias de estantes — e salas de aula cheias de analfabetos funcionais.

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