A moura de Lagos

Continuando a resposta ao repto para participar no concurso de minicontos de Barão, que decorre entre 12 de Janeiro e 12 de Abril. Eis o segundo conto.

Ao jeito de uma Lenda – lenda falsa neste caso –, imaginei uma pequena história que poderia, com a plausibilidade admissível às lendas, explicar a tradição do Banho 29. Reunida a estrutura e os elementos mais comuns a esse tipo literário, que atribuem à presença árabe o fundo de muitas tradições portuguesas, sobretudo do sul do país, aqui fica esta reescrita que de minha autoria só reconheço a construção sintáctica, atribuindo à memória colectiva e à tradição popular a paternidade do conteúdo formado por elementos que os leitores facilmente reconhecerão em muitas lendas de cunho semelhante.

A moura de Lagos

Decorria o tempo em que Lagos era governada por um alcaide mouro que vivia no castelo com uma filha e um sobrinho. O alcaide tinha feito da filha a noiva do sobrinho Ahmed que representava a única família de sangue que tinha nestas bandas do Al-garb pois a filha nem era moura mas uma cristã cujos pais tinham morrido numa batalha, e que o alcaide tinha adoptado. Entretanto o tempo passara e a pequena transformara-se numa bela jovem, que muito adorava e animava o velho alcaide.

Em meados do séc. XIII, reinando em Portugal D. Afonso III, o Algarve foi alvo da reconquista cristã e o castelo de Lagos foi fortemente atacado, vendo-se os mouros obrigados a lutar desesperadamente. No fervor da luta, a filha do alcaide saiu para a rua e, sem demonstrar qualquer receio, vagueou por entre a confusão da turba beligerante. Eis que um jovem guerreiro cristão repara na rapariga e acerca-se dela interrogando-a sobre o que andava a fazer. A jovem responde-lhe que não compreende a razão daquela peleja, da destruição e do ódio que lança homens contra homens, lutando como se fossem feras selvagens. E revelou ao jovem guerreiro que tinha sido por causa de uma guerra assim que tinha ficado órfã. O guerreiro ordenou aos seus homens que retirassem dali a rapariga e que a guardassem na sua tenda, onde ficaria a salvo de alguma flecha ou espadeirada acidental.

A batalha, liderada por D. Paio Peres, é coroada de êxito e os cristãos tomam a praça aos mouros. Ofertada a vitória ao monarca português, este retribuiu concedendo aos valorosos guerreiros todo o saque da batalha. Por via disso, a rapariga ficou a viver com o cavaleiro cristão, por quem rapidamente se apaixonou, e os dois passaram a viver felizes na Vila de Lagos.

Um dia em que a jovem moira passeava à beira rio, na companhia de uma aia, surge-lhe um pedinte, suplicando, de mão estendida, a providencial esmola. A jovem reconheceu imediatamente o sobrinho do alcaide mouro e seu antigo noivo. Mas este, conhecendo o resultado do desfecho da batalha, nunca lhe perdoara o facto de ela viver com um cavaleiro cristão e, perante a evidente felicidade que a jovem demonstrava, Ahmed lançou-lhe um feitiço que a aprisionou para sempre nas águas que banham Lagos; feitiço do qual só se libertaria quando, numa noite de Verão, um jovem se atrevesse a entrar nas águas e, encontrando-a, lhe desse um beijo. Mas esse jovem não podia ser este com quem vivia, pelo que seria muito improvável que alguma vez o feitiço se quebrasse.

Concluído o aziago anúncio, imediatamente a jovem se desvaneceu numa espiral de fumo para nunca mais se ver, para grande pavor da aia que correu rapidamente ao castelo, a contar o sucedido. Fizeram-se buscas e esquadrinhou-se toda a região mas sem se encontrar sinais da jovem ou do mendigo.

Daí para cá, e até aos dias de hoje, muitos são os jovens que na noite de 29 de Agosto tentam encontrar a jovem encantada para a resgatar ao seu feitiço. Porém, quer devido à agitação das águas do mar, quer pela interferência das poderosas luzes artificiais ou dos fogos-de-artifício que festejam a efeméride ou por não serem suficientemente corajosos ou perspicazes para vislumbrar a imagem da jovem, ou por não ouvirem o seu murmúrio suplicante, nenhum conseguiu, ainda, encontrar a linda moura e desfazer o encantamento.

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