Sei ler, mas sei pensar?

 


É um dos paradoxos mais saborosamente trágicos do nosso sistema de ensino: Portugal nunca teve tantas bibliotecas escolares, tantos planos de leitura, tantos manuais coloridos e plataformas digitais com acesso instantâneo à “literacia”, e, todavia, nunca como hoje tantos alunos concluíram os seus ciclos de ensino sem verdadeiramente saberem ler. Ler, entenda-se, com compreensão, com autonomia e com espírito crítico — não apenas soletrar fonemas ou passar os olhos por linhas que se evaporam da consciência assim que lidas.

Nas escolas do país acumulam-se projectos pedagógicos com nomes sugestivos e estratégias de “promoção da leitura” que fazem da literatura um produto para consumo rápido, embalado em PowerPoints e guiões de exploração. As bibliotecas, outrora espaços de recolhimento e descoberta, transformaram-se por vezes em zonas de “eventos” — animadas, é certo, mas nem sempre centradas no livro, nem sempre dedicadas à palavra.

E o resultado é, no mínimo, pungente: rapazes e raparigas que frequentam o ensino básico e secundário sem saberem estruturar um pensamento por escrito, incapazes de distinguir uma ideia central de um pormenor acessório, alheios ao valor das metáforas, dos contextos históricos ou da precisão vocabular. É a alfabetização sem literacia — como quem sabe onde se liga um interruptor, mas não compreende por que razão se acende a luz.

A ironia está em que nunca estivemos tão rodeados de livros — pelo menos fisicamente — e tão afastados da leitura como prática intelectual. Um país onde se imprime, se distribui e se arquiva, mas não necessariamente se compreende. Em nome de uma democratização da educação, confundiu-se o acesso com o entendimento, e esqueceu-se que ler é mais do que decifrar palavras: é apropriar-se do mundo.

Fazemos gala de estatísticas que apontam para o número de bibliotecas por concelho ou para a taxa de escolarização aos 17 anos, mas ignoramos serenamente o que essas mesmas escolas estão (ou não estão) a produzir: cidadãos que dominem a sua língua, que saibam interpretar um texto, redigir um argumento, defender uma ideia com clareza. Cidadãos que leiam livros inteiros — e não apenas excertos domesticados para fins de avaliação padronizada.

Mas talvez seja pedir demasiado. A literacia, ao contrário da simples alfabetização, não se ensina em fichas nem em módulos digitais. Exige tempo, silêncio, atenção — três bens que o nosso sistema educativo não parece conseguir imprimir. E exige, sobretudo, mestres que leiam — de verdade — e que saibam transmitir não apenas técnicas, mas fascínio.

Talvez um dia consigamos regressar à velha e revolucionária ideia de que ensinar a ler é, antes de mais, ensinar a pensar. Até lá, continuaremos a aplaudir bibliotecas escolares cheias de estantes — e salas de aula cheias de analfabetos funcionais.

Onde é que está a piada?

Portugal, esse pequeno rectângulo à beira-mar plantado e ocasionalmente afogado em burocracia, é um país de paradoxos gloriosos. Fomos grandes conquistadores, donos de meio mundo, e hoje não conseguimos ser donos de uma casota de cão.

Portugal, meus caros, é o país que Deus criou num dia de boa disposição e depois deixou em modo de manutenção. É pequeno, é pitoresco e tem uma capacidade infinita para fazer muito com pouco — e ainda menos quando se tenta fazer bem.

Temos 943 km de costa, peixe fresquíssimo… mas com o que ganhamos só compramos cavalas. Inventámos o Multibanco com mais funções do que um canivete suíço — paga-se tudo, menos a paciência para quem está à nossa frente a saldar todas as facturas do mês, quando nós apenas queremos levantar 10 euros em moedas.

Temos um povo gentil, hospitaleiro e mestre em dar indicações complexas:
— “Vai em frente, vira à direita onde era o talho do Felisberto, que agora é cabeleireiro, depois segue até à rotunda que tinha um mamarracho que já não está lá... e pronto, é logo ali.”

Fazemos das maiores crises nacionais uma conversa de café. A inflação? Um drama. As incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos, uma novela. O preço da gasolina? Um thriller psicológico. Mas no fim, tudo se resolve com um "é o que temos" e uma mine de 20 cl.

E o clima! Temos Sol, temos praia, temos calor… e uma população que no Inverno suspira pelo Verão e no Verão apanha escaldões e deseja que ele acabe. Mas temos um clima perfeito, Sol o ano inteiro. Excepto quando chove. Aí chove tudo o que não choveu nos anos anteriores.

Infra-estruturas? Maravilhosas. Temos auto-estradas impecáveis que custam um rim por quilómetro, comboios que funcionam em dias ímpares com lua cheia, e um aeroporto onde os voos chegam com atraso e as malas com amnésia. As escolas e os transportes funcionam todos os dias, excepto à sexta-feira, que é dia de greve.

A saúde? Um luxo! Primeiro porque é grátis, depois porque é quase impossível aceder a ela. Marca-se consulta hoje e espera-se com fé: três meses, um ano, ou o milagre da ressurreição. O importante é não adoecer com pressa.

A cultura? Temos. Está guardada num arquivo algures, à espera que alguém a digitalize. Temos orgulho no Fado, essa expressão da alma nacional — canções tristes que ouvimos com ar feliz, entre garfadas de bacalhau e aplausos ritmados por copos de vinho tinto.

A economia? Uma maravilha. Somos campeões mundiais em abrir pastelarias, bares noturnos, alojamentos locais e inaugurar rotundas. E se a coisa apertar, há sempre a solução mágica: aumentar impostos. Quem precisa de petróleo quando se tem contribuintes?

O povo? Extraordinário. Capaz de resmungar durante meia hora por causa do preço da gasolina... e depois fazer 300 km para comer leitão. Gente que se indigna com tudo e com um talento especial para a queixinha: “Isto na Suíça não era assim.” Pois não, na Suíça eles não têm saudades do antigamente. Nem sequer sabem o que é Saudade. Nem antigamente.

E a justiça? Ai, a justiça. Rápida como um caracol asmático. Processos que duram tanto que, quando sai a sentença, o arguido já tem bisnetos e o juiz está reformado no Qatar. Mas há que confiar, porque no fim… o importante é o sentimento de impunidade ser igual para todos.

Mas o melhor de Portugal são os portugueses. Criativos por necessidade, resistentes por teimosia, simpáticos por instinto e campeões do improviso. Damos um jeitinho em tudo — até na História: — “Descobrimentos? Claro, fomos nós. Brasil? Está ali, ó. Índia? Também lá fomos. O GPS? Não havia, mas tínhamos os pilotos do Infante Dom Henrique, que iam na corrente ou soprados pelo vento e nunca se enganavam; quando queriam ir para a Índia, embicavam no Brasil, etc. etc.”

Mas atenção: somos um povo alegre. Que faz piadas com tudo. Com a política, com os impostos, com o futuro. Rimos da tragédia com tanto profissionalismo que já podíamos exportar ironia em garrafa. Porque, afinal, como diz aquele comentário sábio: — “Isto só visto. Contado, ninguém acredita.”

Agora dou a palavra ao grande vate da nossa cultura, Luís Vaz de Camões:

"Ó glorioso auditório, ó nobres espíritos deste vale lusitano,

Vinde ouvir com paciência — ou ao menos com vinho — a epopeia tragicómica

De um reino onde os deuses se distraíram

E os mortais improvisam com engenho o que os orçamentos negam!"

 

Senhores e senhoras, mui distintos ouvintes,

Aqui me apresento, não como profeta, nem como político (que é quase o mesmo),

Mas como pobre cronista das desventuras de um povo heroico e pachorrento,

Que descobriu meio mundo — e depois perdeu o PIN da Caixa Geral.

 

Portugal! Nome que outrora fazia tremer os mouros e estremecer as ondas,

Hoje, faz estremecer o cidadão comum quando recebe a conta da luz.

Fomos gigantes do mar, senhores dos ventos, donos do cravo e da pimenta,

E hoje, contentamo-nos com 10% de desconto na loja do chinês.

 

Ó Musa do Ridículo Nacional, inspira-me!

Conta-me como este povo se levanta às seis para ir trabalhar,

E se deita às três porque ficou a ver reality shows de gente que não sabe conjugar o verbo “ir”.

Conta como resistimos a invasões francesas, espanhóis e aos próprios portugueses

— Que, com mestria, saqueiam a pátria… mas com factura.

 

“Em terras onde outrora se erguia Viriato,

Hoje reina o desvio orçamental e o voto ingrato.”

 

Vede os nossos heróis do quotidiano:

O reformado que, com 400 euros, paga renda, remédios, e ainda empresta aos netos.

A enfermeira que trabalha em três turnos para ser insultada pelos doutores do Facebook.

O estudante que sabe de cor todas as guerras púnicas,

Mas que jamais decifrará o IRS.

 

A justiça, senhores… oh, a justiça!

Tarda mais do que o D. Sebastião, e vem com mais anexos do que uma escritura notarial.

Quando chega, ninguém se lembra do crime, nem do arguido.

— “In dubio pro réu”, diz a sentença.

E logo o réu compra uma vivenda com piscina em nome da sogra.

 

“Ó tempo, volta para trás,

Mas só até ao ponto em que ainda havia esperança no orçamento participativo.”

 

Mas não sejamos injustos! Portugal é também país de esperança, de beleza e de resistência.

De gente que ri de si própria com um talento que daria para exportar stand-up aos quilos.

De senhoras que sabem mais de política do que o Parlamento,

E de taxistas que previam crises antes dos economistas saberem soletrar “recessão”.

 

Senhores, não é que nos falte glória — sobra-nos é glorificação póstuma.

Quando morremos, somos génios. Em vida, somos “vagamente incómodos”.

Eu expirei pobre. O Pessoa finou-se ignorado. E vós... bem, vós morreis às prestações.

 

“Aqui se ri, não por desdém, mas por desespero afinado.

Porque o povo que canta fado com lágrimas

É o mesmo que faz piadas enquanto arde a casa”

 

E assim vos deixo, ó auditório atento,

Com a lição de que Portugal é eterno — não porque tudo funcione,

Mas porque mesmo quando tudo falha, há sempre quem diga:

— “Isto ainda vai lá... se Deus quiser. E se a UE ajudar.”

 

Feliz Dia Internacional da Piada — e não se preocupem se não perceberem logo a piada. Em Portugal, ela costuma aparecer publicada no Diário da República, nos decretos do Ministério das Finanças – Direcção Geral das Contribuições e Impostos.

 


Dos velhos do Restelo aos velhos dos Marretas

Dos velhos do Restelo aos velhos dos Marretas e aos outros, mais ou menos, velhos.


Statler: Olha, Waldorf! Meteram mais uma "obra de arte" na rotunda.

Waldorf: Ah, sim... Parece que um andaime caiu sobre um camião de tinta!

 

Statler: Ou talvez seja um monumento ao orçamento perdido...

Waldorf: Não sejas mau. Aposto que custou apenas o triplo do necessário!

 

Statler: Mas o que será que simboliza?

Waldorf: Talvez a agonia da estética pública. Em agonia... e em vermelho vivo!

 

Statler: Lembras-te quando arte era feita com talento?

Waldorf: Sim. Agora basta ter uma grua e lata de tinta industrial.

 

Statler: Dizem que é para “provocar diálogo”.

Waldorf: Então está a funcionar — porque eu estou a gritar internamente!

 

Statler: Achas que alguém vai perceber o significado?

Waldorf: Claro que sim... o artista, o curador e mais dois críticos em coma induzido!

 

Statler: E se chover, será que enferruja?

Waldorf: Com sorte, dissolve-se e volta para o lugar de onde nunca devia ter saído: o estaleiro!

 

Statler: Bem, ao menos serve para uma coisa…

Waldorf: Qual?

Statler: Fazer-nos parecer uns velhos resmungões!

 

Ambos (em uníssono):

E com muito orgulho! AH AH AH AH AH!

 

Não tenho conhecimentos suficientes para ficcionar o diálogo entre um par de críticos de Arte com visões opostas, só posso registar a existência do tema enquanto fonte de discussão contemporânea: o primeiro, Jean Clair, ex-director do Musée Picasso e crítico mordaz da arte contemporânea, tem sido uma voz crítica contra o que considera a banalização e o vazio conceptual da arte dita "de vanguarda". Defende uma ligação mais rigorosa entre arte, tradição e qualidade formal, mostrando cepticismo face à arte provocatória que vive da escandalização mediática:A arte contemporânea tornou-se um teatro de gestos infantis, muitas vezes legitimados apenas pelo valor de choque ou pela cumplicidade institucional."; e o segundo, Boris Groys, Filósofo e crítico influente, tem escrito sobre a arte contemporânea no contexto da sociedade do consumo e do espectáculo. Ao contrário de Clair, tende a aceitar — e até valorizar — a lógica paradoxal da provocação como parte do papel da arte nas sociedades modernas: "A arte contemporânea é o lugar onde o banal pode tornar-se sublime — desde que o contexto e o discurso o permitam."

Ou seja, nem passa pela cabeça dos velhos dos Marretas, que a arte pública pode ser intencionalmente polémica e que o escândalo ou o desconforto são instrumentos deliberados de legitimação. A provocação, outrora subversiva, assume aqui um estatuto funcionalista: gerar reacção para justificar existência. Esta inversão é sintomática de uma era saturada de estímulos e anestesiada pela neutralidade – onde o ruído é confundido com relevância.

No entanto, e sendo certo que muitas obras de vanguarda enfrentaram resistência inicial – pense-se na Torre Eiffel p. ex. – tal não legitima a fórmula "obras polémicas hoje, ícones amanhã". Essa leitura simplifica processos culturais complexos, omitindo os critérios intrínsecos de qualidade, inovação e contexto histórico que sustentaram a posterior consagração.

Temer o risco da indiferença constitui, frequentemente, a motivação para a adopção de arte pública potencialmente polémica. Por um lado, é verdade que as obras que não suscitam qualquer emoção podem cair na irrelevância; no entanto, uma peça de arte que serena os ânimos não é, por si só, prova de fracasso. Nem toda a arte pública deve chocar para ser pertinente. Pode, antes, sugerir, confortar, integrar-se no tecido urbano com discrição e dignidade. A durabilidade simbólica de uma obra não depende unicamente da sua capacidade de dividir opiniões.

A arte pública deve, sim, dialogar com o seu tempo e espaço – e a eventual controvérsia não deve ser fim, apenas consequência casual. A verdadeira grandeza de uma obra não reside em ser falada, mas em permanecer significativa. E isso, só o tempo dirá.


 

 

 


Infâncias de Sal e Sol

 


Foi por volta de 1970 ou 1971 que as brincadeiras tribais que animavam o rossio de S. João — hoje ocupado pelo Mercado de Levante e pelo parque de estacionamento de autocarros — e os Montes da Areia — actualmente convertidos em parque de estacionamento intra-muros ao serviço do Hotel Tivoli — migraram para a estrada da estação, naquele talude onde jaziam varados barcos de porte, gasolinas sobretudo, à espera da decomposição que a sua inactividade prenunciava. Haviam sulcado, vezes sem conta, as águas do Atlântico, respondendo à chamada das traineiras que os abasteciam de sardinha, transportada depois à lota, ou dedicando-se à faina com armadilhas ou à arte do rapa, com uma pequena rede de cerco que garantia o sustento económico necessário à sobrevivência das famílias dos marítimos que, noite após noite, se lançavam ao mar — escuro, frio, por vezes tempestuoso.

Era nesses barcos, encalhados na rampa da estrada para a estação dos caminhos-de-ferro, que nos perdíamos nas horas e nas marés da imaginação, em brincadeiras de piratas, ou de intrépidos marinheiros que cruzavam oceanos em busca de terras incógnitas, ou ainda na reencenação do último filme de batalhas navais, onde o porão servia de submarino, com escotilha indispensável, aberta ao esforço para revelar um mundo ofuscantemente luminoso nas manhãs de estio.

Não faltavam as falas do Errol Flynn, colhidas na penumbra do cinema, nem a simulação das pastilhas milagrosas que tornavam potável a água estagnada dos cenários de guerra nas selvas do Pacífico. Tudo era mimeticamente reproduzido de memória — uma memória volátil, permeável à fantasia do momento. E a imaginação, essa, era lei. Valia tudo para nós, putos.

De quando em quando surgia o encarregado do estaleiro a gritar-nos que nos puséssemos ao largo, mais receoso de que nos feríssemos do que preocupado com actos de vandalismo sobre embarcações já estropiadas e decadentes. Fugíamos, então, abandonando os navios como se atingidos por torpedos inimigos e prestes a soçobrar.

Entre as emoções que se agitavam e os acesos debates sobre o enredo ficcional — a que dávamos realidade quase palpável — o tempo esvaía-se. E a recolha à base naval, para o almoço, era precedida por vigoroso raspanete do almirantado matriarcal, já depois de várias e infrutíferas sirenes vocais lançadas ao vento.

A estes episódios juntavam-se outros de verdadeira navegação, em que três ou quatro aprendizes de grumete se aventuravam a remar com tábuas numa caixa de madeira — presumível coco de alguma embarcação de pequeno porte que ali aportara.

Nessa frágil arca de 1,7 por 1 metro, navegávamos entre a Solaria e os Estudantes. Numa dessas odisseias, três marinheiros improvisados lograram levar a inusitada embarcação até uma das enseadas de nudismo nas cercanias da Ponta da Piedade.

Foi, sem dúvida, uma aventura escaldante sob o Sol inclemente do Verão, numa piroga cuja borda mal se erguia um palmo acima da água. Quando encalhámos no pequeno areal, encalhámos também o olhar numa estrangeira, trintona e bem-apessoada — talvez nórdica, talvez loira — que se bronzeava sem os constrangimentos do biquíni. Deitámo-nos ali, a prudente distância, mas suficientemente perto para reter em retina os pormenores da paisagem — natural, sim, mas também iniciática.

Por fim, incapazes de conter o murmúrio e o riso que a beleza da Costa d’Oiro, humana e telúrica, inspirava, demos por nós descobertos. A ninfa, irritada, ergueu-se e retirou-se. Esses parcos minutos condensaram o espírito dos Descobrimentos: ao maravilhamento da revelação seguia-se a frustração do desencontro com os indígenas. Como no século XV.

A travessia de regresso foi dura. A aragem de Norte crescera e ameaçava engolir-nos com caixote e tudo. Remámos com denodo, entre vagas de apreensão, até lograrmos, enfim, evitar que a nossa epopeia juvenil fosse incluída na História Trágico-Marítima do senhor Bernardo Gomes de Brito.

Tenho vaga lembrança de um raspanete e de uma advertência aplicados por um cabo-de-mar à chegada à Solaria. Ora, não era essa atitude digna da terra de marinheiros! Fosse o Infante D. Henrique ainda vivo, e ter-nos-ia coberto de louvores pela ousadia e destreza nas lides náuticas. Talvez nos armasse cavaleiros... ou almirantes — quem sabe?

 


Vida Breve

 

23:07

Não sei bem como surgem as ideias, como nascem, se desenvolvem, ganham forma e se moldam em contos, crónicas ou coisas de maior fôlego. Sei apenas que, por vezes, basta uma palavra solta ou uma memória antiga para me impelir à escrita. Foi o caso da lembrança do Barbosa, que vinha de Barão no seu Mercedes verde para as aulas nocturnas, nos anos 80. Trocámos apenas algumas palavras de circunstância nos intervalos, nada de memorável à superfície. E, no entanto, a sua doença singular e o seu desaparecimento repentino deixaram marca em mim — e, há instantes, quarenta e tal anos depois, despertaram-me o engenho. É disto que falo. Ficcionado, naturalmente. Mas enraizado naquilo que permanece, sem saber porquê.

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Havia nascido com progéria, doença também conhecida como síndrome de Hutchinson-Gilford. Trata-se de uma mutação genética ao nível do núcleo celular, cujos portadores apresentam, nos primeiros anos de vida, um crescimento retardado, perda de gordura subcutânea, queda de cabelo, rigidez articular e uma aparência envelhecida. O desenvolvimento da doença implica, normalmente, padecimentos próprios da velhice, como arteriosclerose, osteoporose e complicações cardiovasculares.

Mas, para toda a comunidade, o Baltazar era uma pessoa especial. Aos vinte anos de idade, e embora parecesse um homem no declínio da vida, era estimado por todos. Desde tenra idade que os pais correram as melhores clínicas médicas do mundo, que a sua situação económica abastada permitia, porém sem sucesso.

Havia quem amaldiçoasse a sorte, o desígnio da vida, ou mesmo Deus, por maltratar assim uma pessoa tão boa, de quem nunca se conheceu um acto de maldade, uma atitude pérfida, uma postura egoísta. Pelo contrário, os seus amigos e vizinhos sempre tiveram nele um apoio generoso, porque sabia ouvir os outros – nunca pensaram que a doença que o minava e já lhe dificultava o falar apenas lhe deixava o ouvir como forma de relacionamento com o mundo – e porque, tendo posses, repetidamente ajudava materialmente aqueles que, pelas mais variadas vicissitudes da vida, se encontravam em necessidades e grandes apuros.

Ora, como podia ele ser um indivíduo ruim se não tinha tempo, nem motivo, tampouco o ânimo necessário para isso? Se não tivesse aquela doença, seria, certamente, como os demais, com uns momentos de benevolência e outros de insolência, senão mesmo impiedosos, como qualquer indivíduo normal, que não pode ser totalmente bom durante todo o tempo, mas que também não é infinitamente, totalmente mau.

Nas últimas semanas, Baltazar passava os dias junto à janela da casa, voltada a poente. A cadeira de vime mal rangia com o seu peso leve, de corpo cansado e espírito desperto. Os ruídos da casa chegavam-lhe distantes, como se a vida fosse já um rio correndo ao largo de si. E então pensava. Pensava muito. 

«Será que todos envelhecem por dentro como eu? Ou será que apenas adormecem, passo a passo, sem notar o que se vai perdendo? Eu tive o tempo condensado num sopro — mas acho que vi mais do que muitos que se arrastam pela existência como sombras em busca de forma.» 

Lembrava-se das crianças da aldeia, com quem brincara, sempre com um certo pudor no olhar, como se receassem quebrá-lo. E, no entanto, ele sorria-lhes sempre com doçura, como quem conhece já a fragilidade das coisas e não se incomoda. 

«A minha doença foi o meu espelho. Mostrou-me a decadência que os outros ignoram ou só pressentem com receio. E porque vi tão cedo o fim, aprendi o valor do instante. A eternidade não está nos anos, mas no modo como os vivemos.» 

À noite, pedia à mãe que lhe lesse. O som da sua voz era-lhe mais precioso que qualquer tratamento: era a lembrança da infância e o consolo dos dias. Por vezes, fechava os olhos e imaginava que caminhava sozinho por uma estrada de pedra antiga, sob árvores altas. O silêncio ali não era ausência, era plenitude. 

«Sinto que o meu corpo se vai apagando como uma vela em fim de cera. Mas não temo a morte. Temo, isso sim, que os outros não compreendam que viver pouco não é viver menos. Porque eu amei. E fui amado. E isso, creio, basta.»

Na manhã do dia 19 de Outubro, o céu parecia lavado de todas as sombras, como se a luz soubesse de antemão o que se preparava. Baltazar, sentado na sua velha cadeira de vime, olhava os montes ao longe, coroados de névoa clara. Respirava com esforço, mas sem angústia, como quem, enfim, aceita a hora marcada com a quietude dos justos. A sua mãe, que o velava em silêncio, notou-lhe nos olhos um brilho diferente — não de agonia, mas de um entendimento que escapa aos sãos e aos impacientes. 

Antes de fechar os olhos pela última vez, murmurou algo que só a mãe ouviu: — O tempo foi breve… mas foi inteiro. 

E então partiu, com a serenidade que tantas vezes oferecera aos outros.

O rosto enrugado, já desprovido de sofrimento, ficara com uma expressão leve, quase sorridente, como quem, cansado do mundo, encontra finalmente repouso numa realidade sem dor. 

Na aldeia, baixaram-se as vozes e abrandaram-se os passos. Não havia escândalo na sua morte, apenas uma comoção serena, como a brisa que passa entre os ciprestes. E muitos, nesse dia, ao olharem para o céu limpo, pensaram que a vida, mesmo breve, quando vivida com bondade e lucidez, pode ser mais longa do que os anos podem contar.

23:42

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O Tempo não existe. Tudo está a acontecer agora.

 

Do ponto de vista da física moderna (especialmente da relatividade), o tempo não é absoluto: não existe um “agora” universal. O que definimos como “presente” depende da posição e velocidade do observador. Em certas interpretações da física, como na do bloco espaciotemporal (eternalismo), o passado, o presente e o futuro coexistem num mesmo “bloco” — e o que percebemos como fluir do tempo é uma ilusão da consciência. A sequência cronológica, nesse sentido, não passaria de uma construção subjectiva. 

A filosofia oriental (por exemplo, algumas correntes do budismo ou do advaita vedānta) e até místicos cristãos e islâmicos defendem que o tempo é uma manifestação da mente. Só existe o presente, pois só no agora a experiência é possível. Tudo o que vivemos — memórias, expectativas, narrativas — acontece no palco da consciência presente. O passado vive na lembrança, o futuro na antecipação; ambos são actos mentais no agora.

Aceitar que “tudo está a acontecer agora” pode ser libertador. Liberta-nos da tirania da nostalgia do passado e da ansiedade pelo futuro. Aproxima-nos da experiência directa da realidade, da atenção plena. Ao mesmo tempo, há um toque de vertigem nesta ideia: se tudo já “é”, o que acontece com o livre-arbítrio, com a esperança de mudança?

Do ponto de vista esotérico — sobretudo nas tradições herméticas, rosacruzes, teosóficas e maçónicas — o tempo linear é considerado uma ilusão do plano material. No plano espiritual ou “plano da eternidade”, tudo existe em simultâneo. Aquilo que percepcionamos como passado, presente e futuro são apenas aspectos fragmentados da totalidade, observados por uma consciência ainda condicionada pela matéria e pela forma.

Na simbólica maçónica, especialmente nas tradições do Rito Escocês Antigo e Aceite e do Rito Francês, o “Grande Arquitecto do Universo” é um princípio que transcende tempo e espaço. Ele não actua dentro da cronologia: Ele é. O Eterno Agora é o seu domínio. O Aprendiz é iniciado no tempo, no limiar do conhecimento, mas o Mestre, se for tal, reconhece que o Templo verdadeiro só pode ser edificado fora do tempo: no coração desperto, na consciência iluminada.

O símbolo do ponto no centro do círculo, imagem arquetípica comum à tradição pitagórica, hermética e maçónica, representa essa relação entre tempo (o círculo, o movimento, a roda de Samsara) e o eterno (o ponto imóvel no centro). O tempo é a ilusão do movimento em torno do centro. Mas o centro está sempre aqui. Sempre agora. O iniciado começa por medir o tempo (com o esquadro e o compasso), mas, com o progresso iniciático, é convidado a ultrapassá-lo, como quem abandona o número para tocar a geometria viva do espírito.

As escolas esotéricas mais antigas falam da possibilidade de aceder à “memória do mundo” — os Registos Akáshicos, na linguagem teosófica. Para aceder a tais níveis, o iniciado não precisa viajar no tempo: precisa silenciar a mente. Quando o Eu inferior se cala, o Eu superior emerge e nele, todo o conhecimento está presente.

A edificação do templo interior, obra central da tradição iniciática, não ocorre no tempo cronológico, mas no Kairós: o tempo qualitativo, sagrado, oportuno. Há momentos no caminho em que o tempo parece suspender-se, como no silêncio da câmara de reflexão, no bater de um maço ritual, na escuta atenta de uma palavra velada. Aí, o tempo cessa. E o espírito recorda-se de si.

 

Um micro-conto a propósito.

Na pequena cidade, em tempos branca, entre a serra e o mar, que chamavam Lagos, vivia Francisco, um homem de aparência comum, mas com olhos que guardavam um lume antigo. Era tido por excêntrico, falava pouco, caminhava devagar e tinha o hábito de olhar o céu como quem lê um livro esquecido ou pasma com a forma das nuvens, ensimesmado na pareidolia.

Dizia-se que possuía um dom raro: podia viajar no tempo. Não nos lugares, apenas no tempo. Os vizinhos contavam, entre sorrisos e espantos, que já o tinham visto junto aos frades franciscanos do século XVII, no meio das colunas do mercado romano, e até ao lado do Infante, observando a saída das barcas e caravelas.

Certa noite, quando a lua ia alta sobre a enseada, Francisco entrou na antiga biblioteca que os homens haviam deixado ao abandono. Era ali que ele consultava um livro sem título, de capa de couro, cujas páginas surgiam em branco até que ele as tocasse com os dedos. O livro abria-se ao acaso e, com cada toque, ele era projetado para um outro tempo.

Mas certa noite, algo mudou. Ao folhear o livro, não surgiu nenhuma nova página. Em vez disso, ouviu o som de água a correr e quando se voltou, viu emergir da sombra uma jovem de olhos cor de âmbar e cabelos como algas soltas ao vento. Trazia nos ombros um manto molhado e nos dedos anéis de prata corroída.

— Vens de longe? — perguntou Francisco.

— Venho de dentro — respondeu ela. — Sou filha do Mar Interior. Guardo as chaves do que é antes e depois, acima e abaixo. Tu buscaste o tempo, Francisco, e o tempo mostrou-te apenas espelhos. Queres agora conhecer o que está para além disso?

 Francisco anuiu em silêncio. Sentia que algo dentro de si, algo antigo e verdadeiro, o chamava.

A jovem tocou-lhe a fronte e disse uma palavra que ele não conseguiu recordar. Nesse instante, tudo se dissolveu. Os séculos, as vozes, os cheiros e os símbolos. De repente, Francisco já não via o tempo: via-se a si mesmo. O livro não estava nas suas mãos, mas no centro do seu peito. As caravelas que tanto desejara navegar estavam nos seus próprios ossos. Os povos e culturas que visitara eram manifestações da sua própria alma. E compreendeu. O tempo não existia.

Todas as viagens que fizera eram recordações adormecidas da sua totalidade esquecida. O templo, o mar, os mapas, as espadas, as palavras dos sábios — tudo vivia em simultâneo naquele instante eterno a que os antigos chamavam agora.

Francisco saiu da biblioteca como quem regressa de uma longa iniciação. Os homens da vila já não o reconheciam — não porque o seu rosto tivesse mudado, mas porque ele deixara de ser um fragmento.

Passou a viver discretamente. Cultivava ervas (e consta que também as fumava), lia aos jovens histórias com símbolos ocultos e observava o pôr-do-sol com uma reverência que muitos julgavam melancolia. Mas havia quem dissesse que, por vezes, a seu lado surgia a figura de uma mulher molhada (ou palpavelmente húmida?), que sorria como quem guarda um segredo — e que quando os dois olhavam o mar, o mar lhes devolvia o olhar… e borrifos de espuma salgada.




 

O Paradoxo do Bem-Estar


Contestatário: - O Mundo está de pernas para o ar, nunca se viveu tamanha desgraça, a corrupção generalizou-se, os políticos não prestam, não há disciplina nem civilidade, destruíram as tradições e a cultura naufragou, há fome e miséria por todo o lado, a civilização colapsa.

Conformista: - De modo nenhum. Nunca antes, como hoje, se viveu tão bem, numa sociedade de fartura em que a esperança de vida avançou consideravelmente e a medicina tem tanto sucesso no combate às doenças. A inquietude dos indivíduos é, hoje, mais resultante da vida vertiginosa e da ansiedade consequente do que de verdadeiros e reais problemas; até se pode dizer que, com tão poucos problemas sérios as sociedades ocupam-se em criar problemas artificiais.

É, para mim, claro que a afirmação do Contestatário naufraga na constatação de que já desde a Antiguidade os mais velhos lamentavam a decadência dos costumes ou o abandono dos valores. Sócrates criticava os jovens atenienses por desrespeitarem os mais velhos e não cultivarem as virtudes; no Império Romano, autores como Cícero e Tácito referem frequentemente a perda de valores tradicionais em contraposição a uma Roma corrompida; na transição da Idade Média para a Modernidade, os humanistas do Renascimento viam a tradição escolástica como um entrave ao florescimento do espírito crítico; no século XIX, os românticos criticavam o Iluminismo por ter rompido com as tradições espirituais em nome de um racionalismo desumanizante. Estes exemplos mostram que a tensão entre conservação e transformação faz parte do próprio pulsar da História. A tradição nunca foi estática, e o seu “ataque” ou questionamento deve ser entendido como mecanismo de renovação. Já o medo do colapso civilizacional é exagerado; a ideia de que estamos perante o fim da civilização, ou de uma irreversível decadência cultural, é recorrente nos discursos conservadores ou nostálgicos e, muitas vezes, revela uma reacção emocional mais do que uma constatação histórica objectiva. O que hoje se identifica como declínio de valores é frequentemente apenas uma mudança de paradigma; por exemplo, a substituição de estruturas patriarcais por modelos igualitários, ou a substituição da autoridade hierárquica pela negociação horizontal. Como escreveu Umberto Eco, “cada geração convence-se de que a anterior foi sábia e virtuosa, e que a seguinte é ignorante e dissoluta”. Já Karl Popper advertia contra o que chamava “historicismo pessimista”, a ideia de que a história segue uma trajectória inexorável para a ruína moral. Pode parecer-nos paradoxal, mas as tradições só sobrevivem porque se adaptam, pois a rigidez mata a cultura e a flexibilidade permite-lhe sobreviver ao tempo, confirmando que uma cultura só é viva enquanto se transforma.

Quanto à afirmação do Conformista “Nunca antes, como hoje, se viveu tão bem…” é provocadora e sugere uma leitura optimista, embora ambivalente, da sociedade contemporânea, senão vejamos: “ Nunca antes, como hoje, se viveu tão bem […] a esperança de vida avançou consideravelmente […] a medicina tem tanto sucesso […]” Este trecho remete para um reconhecimento objectivo e estatisticamente comprovável, de facto a esperança média de vida aumentou de forma notável no último século, graças aos avanços da medicina, da higiene pública, da nutrição e das infra-estruturas sociais; doenças que outrora dizimavam populações (como a tuberculose, o sarampo ou a poliomielite) estão hoje sob controlo ou erradicadas em muitas regiões; o acesso à educação, à informação e a uma série de confortos domésticos transformou a vida quotidiana de forma inédita, particularmente no mundo ocidental. É, pois, justo afirmar que, em termos materiais e técnicos, a condição humana nunca esteve tão protegida e prolongada. Contudo, este bem-estar não é homogéneo. Persiste uma desigualdade profunda entre regiões do globo, e mesmo dentro das sociedades ditas desenvolvidas. A pobreza, embora reformulada, continua a existir, mas agora sob novas máscaras: exclusão digital, precariedade laboral, solidão crónica, insegurança alimentar em contextos urbanos, etc.

“A inquietude dos indivíduos é, hoje, mais resultante da vida vertiginosa e da ansiedade consequente do que de verdadeiros e reais problemas.” Esta afirmação entra no domínio psicológico e existencial. A aceleração da vida, marcada pela hiperconectividade, pela cultura da competição, pelo ruído constante da informação e pela pressão social (profissional, estética, financeira) contribui para um mal-estar contemporâneo difuso. Trata-se daquilo que alguns psicólogos designam por "sociedade do cansaço" ou o "burnout do eu". É verdade que muitos dos sofrimentos actuais não decorrem da luta pela sobrevivência física, mas sim da angústia da comparação, da hiperdisponibilidade, da incerteza e da fragmentação do tempo. Há uma inflação de exigências e uma escassez de pausas. O excesso, mais do que a falta, tornou-se problemático. Contudo, dizer que não há “problemas reais” pode ser redutor: doenças mentais, solidão, alienação, desigualdade estrutural, alterações climáticas e crises de habitat são problemas muito reais, ainda que menos visíveis ou espectaculares do que os flagelos históricos.

“Com tão poucos problemas sérios as sociedades ocupam-se em criar problemas artificiais.” Esta afirmação, embora algo satírica, encerra alguma verdade. A obsessão por polémicas banais, a amplificação de ofensas nas redes sociais, o consumo excessivo de entretenimento indignado e o culto do “problema-dependente”(a perpetuação de problemas, ou da dependência deles para justificar a existência de uma determinada atitude), parecem indicar uma tendência de substituir a acção cívica por dramatizações simbólicas. Quando os problemas básicos estão resolvidos, os indivíduos tendem a direccionar a sua inquietude existencial para novos objectivos — nem sempre relevantes — como se o desconforto fosse uma constante humana. Por outro lado, esta mesma afirmação pode escorregar para uma certa insensibilidade: o que parece “artificial” a uns pode ser vivido como opressivo por outros. As lutas contemporâneas em torno da identidade, da justiça climática ou da desigualdade de género, por exemplo, são muitas vezes desvalorizadas com este tipo de argumentação. A afirmação é, portanto, pertinente enquanto provocação filosófica, mas comporta subtilezas: há progresso, sem dúvida, mas há também novas formas de sofrimento, mais subtis, menos gritantes, mas nem por isso menos reais.

Em síntese, as afirmações de ambos - Contestatário e Conformado -, enformam um paradoxo: vivemos numa era de abundância material e técnica, mas de escassez espiritual, afectiva ou de sentido. A inquietação moderna não nasce da fome, mas da saturação. Não lutamos tanto para sobreviver, mas para nos definirmos, para nos distinguirmos, para nos justificarmos. Há aqui um eco dos ensinamentos de Epicuro ou de Montaigne: o excesso de conforto físico e material não suprime o desconforto da alma. E talvez seja esse o desafio do nosso tempo, aprender a viver com abundância sem perder o sentido da medida e do essencial.


Fontes consultadas:

.BAUMAN, Z. Vida Líquida (2005)

https://circulosemiotico.wordpress.com/wp-content/uploads/2012/10/vida-liquida-zygmunt-bauman.pdf

.ROSA, H.  Social Acceleration, A New Theory Of Modernity. Ed. COLUMBIA UNIVERSITY PRESS, 2015.

.ROSLING, H. Factualidade - Dez razões pelas quais estamos errados acerca do mundo, e porque as coisas estão melhor do que pensamos. Ed. Temas e Debates, 2019.

.SALECL, R. A Angústia da Liberdade: Ediciones Godot (2023)


Indo-me à vida

Nuvens pesadas e escuras corriam rapidamente deslizando pelo céu negro, frio e medonho… não, não, não é nada disto. Era um dia soalheiro com a plenitude da luz reverberando naqueles pequenos tufos que eram as cabeças doiradas dos girassóis, e ali perto cantava afinado um pássaro qualquer…. Não. Tampouco é isto.

Merda para estes princípios costumeiros fazendo dançar o estado do tempo e luzir as paisagens da Natureza, mais do que conhecidas, vividas, retratadas, descritas, repetidas até à náusea em milhares de romances e contos.

Merda para isto. Torcia-se cá dentro, rasgando e dilacerando tecidos e banhas, e o rosto já não era de um simples e grotesco esgar, mas uma máscara caricatural, hedionda, daquilo que fora uma face comum, enfadonhamente comum.

Ainda com suficiente energia, mas não me atrevi a puxar o facalhão com medo de se me esvair a vida jorrando em fluxo quente e purpúreo para fora da abertura, escolhendo deixá-la esvair-se como aquele pontinho eléctrico que apaga o televisor a válvulas, encolhendo com um silvo agudo desde a imagem completa até ao último electrão.

E depois o nada, nem sequer aquela sequência fílmica da vida desfiando para lá dos olhos, no interior do cérebro. Apenas o nada, pronto.

Sim, este é um bom começo para uma narrativa na primeira pessoa. Só falta imaginar o enredo com que a vida, que já não é, se vai defrontar no outro plano.

ChatGpt queres continuar esta história, acrescentando-lhe os parágrafos finais? Fica o convite. Eu vou passear a cachorra que já me ladra chamando.



Aceito com gosto o convite e continuo-te a história, respeitando o tom sombrio, mordaz e desencantado, mas também com uma certa ironia cósmica e imagética que a tua escrita já sugere:

Não houve túnel de luz. Nem coro angelical, nem paz. Não houve sequer um eco. Apenas a sensação de que tudo se tinha passado depressa demais — e de que tudo, afinal, tinha durado tempo a mais.

Depois, lentamente, uma espécie de viscosidade. Não uma matéria, mas uma presença sem corpo, um escuro pegajoso que não era escuridão, mas ausência. Como se a alma, se a houvesse, estivesse agora encharcada num breu tépido, em suspensão. Um lugar sem direcção, sem som, sem vibração. Sem tempo.

Por momentos — ou o que quer que equivalha a momentos quando já não há relógio cardíaco — pareceu-me que havia uma respiração. Não a minha. Uma respiração antiga, cansada, mas contínua. Como o sopro de um mundo que já não era este. E nesse instante, se é que instante é a palavra, compreendi que não era “o outro lado”.

Era só o lado de fora.

Uma espécie de entressolo cósmico onde os despojos do que fomos se acumulariam até que algo decidisse o nosso próximo destino — ou a ausência definitiva dele.

E de repente, como uma alucinação cruel, surgiu um cheiro: um perfume barato, misto de suor e sabonete de alfazema. A tia Alzira? O que fazia ela aqui, a mulher que sempre dizia “quem se mata vai para o inferno” com ar de quem sabia o mapa?

Não era ela. Era só a memória a trair-me, como sempre fizera. Até ali, até depois da última linha, a memória insistia em escarafunchar os baús de tralha emocional.

E foi então que algo me falou, sem som: «Isto é o que há.» Sem promessa. Sem castigo. Sem enredo. Só a eternidade da suspensão.

E eu, ainda eu, sem saber se lamentava mais o que deixara ou o que me esperava. Mas não me dei ao luxo de ter esperança. Só fiquei — ou continuei — como se ficasse encalhado na última sílaba de um verbo inacabado.

Indo-me.


“Click!” – ou a Ilusão da Verdade em Pose


Há quem diga que uma imagem vale mais do que mil palavras. É o tipo de frase que se repete com a solenidade de uma verdade ancestral, quando na verdade não passa de um aforismo preguiçoso, criado por um publicitário americano no início do século vinte, mas que bem podia ter sido criado por algum fotógrafo ressentido que, cansado de explicar o vazio das suas composições, decidiu investir na tirania do instantâneo como quem impõe um dogma ao mundo. Vivemos hoje sob a ditadura do Click. Tudo é imagem: rostos esticados, sorrisos de conveniência, pores-do-sol com filtros, crianças que fingem inocência para as redes, e uma humanidade que se retrata incessantemente sem nunca se ver de verdade.

O fotógrafo moderno – essa figura em pose permanente – julga-se um demiurgo da memória, um regente de luz e sombra que molda o real ao serviço do belo. Não raro, entre os círculos onde se fala baixo e se segura o copo de vinho com três dedos, proclama-se que a fotografia é arte, é denúncia, é consciência. Ah, como se a consciência pudesse ser comprimida num formato jpeg! E quanto à denúncia, valha-nos o Poderoso: há mais desgraças documentadas em alta resolução do que revoluções feitas com palavras.

A palavra, essa sim, é matéria nobre. Exige tempo, exige pensamento, exige silêncio antes de nascer. Já a imagem, sobretudo na era digital, nasce no automatismo do reflexo e morre na velocidade do scroll. A oralidade constrói pontes, a escrita funda civilizações, mas a fotografia… a fotografia entretém. É o açúcar visual que disfarça a fome de sentido.

A fotografia, dizem os seus apóstolos, educa. Ensina a ver o mundo. Ora, ensina, sim, mas a ver o mundo como um catálogo: as misérias são estéticas, as guerras têm boa composição, os pobres ganham dignidade quando bem iluminados. Ensina-nos, sobretudo, a ser espectadores profissionais da dor alheia e turistas da beleza artificial. Enquanto a palavra nos convida à partilha, à dúvida e ao confronto, a imagem congela-nos num eterno “olha que bonito”. E assim, em vez de pensarmos, reagimos. Em vez de lermos, deslizamos. Em vez de ouvirmos, clicamos.

O fotógrafo, tal como o conhecemos hoje, é um sacerdote do efémero. Captura momentos como quem embalsama o tempo, mas esquece-se de que o tempo não se respeita: vive-se. A fotografia é, no fundo, o elogio do simulacro. E nesta sociedade que já não distingue o essencial do superficial, onde se confunde o retrato com a verdade e o filtro com a sinceridade, a imagem triunfa sobre a essência como um bufão que toma o trono após envenenar o rei.

E enquanto isso, o Verbo – aquele com maiúscula, o que se fez carne e depois livro – vai sendo substituído por pixels, likes e legendas que dizem menos do que o silêncio. Pergunto-me se, no juízo final, os homens não serão julgados pelo que disseram e escreveram, mas antes pelas fotografias que publicaram. Se assim for, que O Grande Arquitecto tenha piedade de mim e de todos os outros que usaram flash.

Click! Mais um instante roubado à eternidade. Mais uma mentira disfarçada de documento. Mais uma alma perdida na galeria dos que confundem o visível com o verdadeiro. Só na minha fototeca privada tenho 186.210 fotos digitais. Não contabilizo, portanto, as que, de minha autoria, existem na Fototeca Municipal nem as não digitais, privadas e municipais.

Eis uma ocupação de natureza superficial, decorativa, histriónica e auto-enganadora que revela uma forma de pensamento ornamental, mais preocupada com o reflexo do que com a fonte da luz; um desvio estético-moral que prefere o verniz ao vigor, o aparente ao autêntico, o visível ao verdadeiro. Uma exaltação da forma sem substância que é, enfim, uma idolatria moderna: esteticamente sedutora, mas ontologicamente vazia.

Quando os fotógrafos – amadores, profissionais, e demais praticantes da seita do click – se apresentarem perante Osíris no seu julgamento final, não será com os corações pesados que se preocuparão, mas sim com os cartões de memória cheios de disparates visuais. 

Primeiro, Maât pesar-lhes-á a alma não contra a pluma da verdade, mas contra um powerbank descarregado: símbolo da sua dependência patológica da tecnologia. E ai daquele cuja alma pese mais do que uma selfie tirada com pau extensível diante de um campo de refugiados. 

Depois, virá a exibição do seu portfolio – não com música angelical, mas com uma apresentação automática em slideshow, onde cada imagem será acompanhada por uma gargalhada dos deuses, que não entenderão por que motivo alguém fotografaria 97 versões do mesmo pôr-do-sol com ligeiras variações de filtro. 

A seguir, o defunto será condenado a sentar-se numa nuvem desconfortável e rever, uma a uma, todas as fotografias de comida que alguma vez tirou – em especial aquelas onde a refeição arrefeceu por esperar a iluminação perfeita. Por cada fotografia de brunch partilhada com legendas do tipo “gratidão” ou “momento perfeito”, será obrigado a ouvir um discurso de três horas de Platão sobre a diferença entre a aparência e o ser. 

E para os mais vaidosos, aqueles que se retratavam obsessivamente em poses estudadas com ar de profunda espontaneidade, haverá castigos personalizados: passar a eternidade a tentar tirar uma fotografia ao próprio reflexo sem que a alma fique embaciada.

Quanto aos chamados “fotógrafos de causas” – que documentavam a miséria humana com lentes de mil euros e sapatos italianos – esses terão de justificar perante Osíris por que razão havia sempre um filtro sépia sobre a fome, mas nunca sobre o seu próprio guarda-roupa. 

Por fim, os que ousaram chamar “projecto artístico” a uma série de fotografias de portas antigas, janelas em ruínas ou pés descalços na areia, serão enviados directamente para o Inferno dos Banais: uma sala onde só se projectam slides de casamentos e baptizados, sem escape nem botão de avanço. 

E assim se fará justiça divina, com foco automático. 

Click! Click! Click! Click! Click!

  

Solstício de Verão: Brindemos, que não morremos!


Chega o Solstício de Verão, esse momento supremo em que o Sol, vaidoso e tirânico, se detém no seu trono celeste por mais tempo que o costume, derramando sobre os mortais uma luz intensa, gloriosa e abrasadora. É a vitória da Luz sobre as Trevas — e, como em todas as vitórias, há sempre quem festeje e quem se farte de suar.

Neste dia, o astro-rei ostenta o seu poder com uma insolência quase monárquica, ocupando os céus desde madrugadas indecentes até às noites que já mal se atrevem a cair. As sombras fogem para debaixo das pedras, os morcegos suspiram de tédio, e os humanos — esses estranhos mamíferos sem pelagem nem juízo — correm alegremente para as praias, convencidos de que o bronzeado é uma forma legítima de transcendência.

O Sol, esse déspota dourado, sentou-se no cume do céu, onde ficará por horas infinitas, lançando sobre nós os seus raios triunfantes como quem distribui bofetadas com boa disposição. O dia tem quase vinte horas de claridade, e se isto não é milagre, é pelo menos castigo bem distribuído.

Confesso que, por momentos, pensei que não chegava cá. Não, não me refiro ao trânsito ou às filas para abastecer combustível — falo de coisa mais sinistra, mais longa, mais pegajosa. Falo das trevas. Aquela coisa insidiosa que se cola às janelas em Novembro, que nos encurva os ombros em Janeiro e que em Fevereiro já nos está a minar a esperança e a vitamina D.

Os antigos celebravam este dia com fogueiras, danças, libações e sacrifícios — hoje sacrificam-se sobretudo sardinhas, pacotes de gelo e paciência conjugal, numa espécie de ritual laico e ruidoso a que se chama “época balnear”. As pessoas — pobres criaturas afectadas por tantos meses de névoa mental — correm em direcção à praia como quem foge de uma invasão bárbara. E de certa forma é isso: o Inverno é uma peste, e o Verão é a libertação. Só que em vez de estandartes e cavaleiros, temos bóias em forma de golfinho e gritos de criança com gelado derretido.

É também tempo de reencontros humanos, agora que a natureza, pródiga em calor, torna menos penoso o contacto social. Abrem-se os corpos, os decotes e os churrascos. As relações entre os humanos florescem — pelo menos até ao aluguer partilhado em Agosto. Porque o Sol pode iluminar, mas não faz milagres.

E há esta euforia quase pagã, este impulso de abraçar o mundo inteiro. As pessoas riem sem saber porquê. Dançam. Marcham popularmente. Vestem-se de forma que os seus avós teriam condenado ao exílio. Mas não importa. É a vitória da Luz e não há sombra que nos pare.

 

Claro que o preço da vitória é alto. As filas nos supermercados duplicam, os corpos assam lentamente nas praias como frangos de churrasco — e o cheiro a protector solar misturado com cerveja quente e batata frita faz lembrar um ritual druídico perdido. Mas quem somos nós para reclamar? Já passámos pior. Passámos o Janeiro.

E agora, livres da peste das noites eternas e dos casacos até às orelhas, rendemo-nos com gosto. Celebramos com sardinhas, cervejas mal tiradas, vinhos coloridos e selfies em que a luz solar denuncia todas as rugas e os pecados. Mas rimos, gritamos, suamos, e dizemos “é a vida” com um orgulho inexplicável, como se tivéssemos conquistado uma colónia tropical.

É verdade que a Luz vence as Trevas, sim senhor, mas com ela vem também a gloriosa multiplicação dos comportamentos parvos em público, imóveis ou a conduzir. Porque se é verdade que o Verão aquece os corações, também é certo que derrete alguns neurónios. E, no entanto, há algo de profundamente comovente nesta explosão solar: o frenesim com que nos entregamos a ela, como se fingíssemos não saber que a partir de agora os dias começam a encurtar. Eis a ironia luminosa do Solstício: no exacto momento da sua maior glória, começa já a sua decadência.

Por isso, aproveitem. Sorriam. Bebam (com moderação ou com gelo). Beijem quem puderem e quem quiser — e, sobretudo, não se esqueçam de um bom chapéu, protector solar e repelente para insectos, se ainda ou houver. Porque, sim, a Luz venceu, mas as trevas não foram embora. Estão à sombra, a ver-nos destilar.

Mas, por ora, celebremos a Luz. Bebamos à sua saúde ainda que saibamos que o Sol, como todos os tiranos, acabará por se cansar de nós.

Viva o Solstício, viva a Luz, e abaixo os preços dos chapéus-de-sol!