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Indo-me à vida

Nuvens pesadas e escuras corriam rapidamente deslizando pelo céu negro, frio e medonho… não, não, não é nada disto. Era um dia soalheiro com a plenitude da luz reverberando naqueles pequenos tufos que eram as cabeças doiradas dos girassóis, e ali perto cantava afinado um pássaro qualquer…. Não. Tampouco é isto.

Merda para estes princípios costumeiros fazendo dançar o estado do tempo e luzir as paisagens da Natureza, mais do que conhecidas, vividas, retratadas, descritas, repetidas até à náusea em milhares de romances e contos.

Merda para isto. Torcia-se cá dentro, rasgando e dilacerando tecidos e banhas, e o rosto já não era de um simples e grotesco esgar, mas uma máscara caricatural, hedionda, daquilo que fora uma face comum, enfadonhamente comum.

Ainda com suficiente energia, mas não me atrevi a puxar o facalhão com medo de se me esvair a vida jorrando em fluxo quente e purpúreo para fora da abertura, escolhendo deixá-la esvair-se como aquele pontinho eléctrico que apaga o televisor a válvulas, encolhendo com um silvo agudo desde a imagem completa até ao último electrão.

E depois o nada, nem sequer aquela sequência fílmica da vida desfiando para lá dos olhos, no interior do cérebro. Apenas o nada, pronto.

Sim, este é um bom começo para uma narrativa na primeira pessoa. Só falta imaginar o enredo com que a vida, que já não é, se vai defrontar no outro plano.

ChatGpt queres continuar esta história, acrescentando-lhe os parágrafos finais? Fica o convite. Eu vou passear a cachorra que já me ladra chamando.



Aceito com gosto o convite e continuo-te a história, respeitando o tom sombrio, mordaz e desencantado, mas também com uma certa ironia cósmica e imagética que a tua escrita já sugere:

Não houve túnel de luz. Nem coro angelical, nem paz. Não houve sequer um eco. Apenas a sensação de que tudo se tinha passado depressa demais — e de que tudo, afinal, tinha durado tempo a mais.

Depois, lentamente, uma espécie de viscosidade. Não uma matéria, mas uma presença sem corpo, um escuro pegajoso que não era escuridão, mas ausência. Como se a alma, se a houvesse, estivesse agora encharcada num breu tépido, em suspensão. Um lugar sem direcção, sem som, sem vibração. Sem tempo.

Por momentos — ou o que quer que equivalha a momentos quando já não há relógio cardíaco — pareceu-me que havia uma respiração. Não a minha. Uma respiração antiga, cansada, mas contínua. Como o sopro de um mundo que já não era este. E nesse instante, se é que instante é a palavra, compreendi que não era “o outro lado”.

Era só o lado de fora.

Uma espécie de entressolo cósmico onde os despojos do que fomos se acumulariam até que algo decidisse o nosso próximo destino — ou a ausência definitiva dele.

E de repente, como uma alucinação cruel, surgiu um cheiro: um perfume barato, misto de suor e sabonete de alfazema. A tia Alzira? O que fazia ela aqui, a mulher que sempre dizia “quem se mata vai para o inferno” com ar de quem sabia o mapa?

Não era ela. Era só a memória a trair-me, como sempre fizera. Até ali, até depois da última linha, a memória insistia em escarafunchar os baús de tralha emocional.

E foi então que algo me falou, sem som: «Isto é o que há.» Sem promessa. Sem castigo. Sem enredo. Só a eternidade da suspensão.

E eu, ainda eu, sem saber se lamentava mais o que deixara ou o que me esperava. Mas não me dei ao luxo de ter esperança. Só fiquei — ou continuei — como se ficasse encalhado na última sílaba de um verbo inacabado.

Indo-me.


Contrato com a velha do alfange


 

A Ceifeira visitou-me e propôs fornecer-me algo que eu muito desejava a troco de me levar para o Além. Disse que me permitia despedir-me dos entes queridos e dos amigos. Perguntei se o podia fazer presencialmente, respondeu-me que sim.

Mostrei-lhe a minha lista de amigos do Facebook e disse-lhe que despedir-me de mil pessoas podia levar algum tempo. Olhou-me gravemente, com aqueles olhos inteiramente vazios, e propôs-me que publicasse um aviso com local e data para proceder às despedidas, e que eu só iria procurar, posteriormente, aqueles que faltassem a esta chamada. Anui e agendei tudo para daí a uma semana, publicando o aviso onde se podia ler «A morte vai levar-me, mas permite que me despeça pessoalmente de todos os meus amigos. Vem despedir-te de mim no dia 29 de Fevereiro de 2024. Se faltares terei de procurar-te noutra altura».

Dada por satisfeita, a sinistra figura já se afastava quando suspendeu a marcha e permaneceu imóvel por uns segundos, depois virou-se abruptamente e fixou-me apreensiva. Eu permanecei imóvel. Será que ela tinha descoberto a minha artimanha? Vagarosamente, acabou por retomar o caminho, provavelmente para anunciar a partida de mais almas destemperadas.

Na data aprazada compareceram uma trintena de ‘amigos’ a quem dispensei logo um expressivo: - Ena, com amigos como vocês, quem precisa de inimigos?! Mas a culpa era inteiramente minha, que os elegera e qualificara como tal. Se desejava exclusivamente amigos inteligentes devia tê-los cultivado devidamente. Imaginara, eu, que anunciando as premissas do acordo os meus amigos optassem por faltar ao encontro, contribuindo, assim, para um repetido e considerável adiamento da minha última viagem.
Ainda assim o rácio de presenças não era mau. Teria de publicar a tal convocatória mais vezes, para outras datas atempadamente aprazadas, e isso significava ganhar tempo, bastante tempo.

Dei disso conhecimento à mefistofélica figura que obviamente se apresentara na agendada despedida. Mas eu não previra que o pérfido e fedorento negrume dominasse as tecnologias informáticas e conhecesse algoritmos que permitiam colocar nas caixas de mensagens dos computadores e telemóveis de todos os meus contactos a minha convocatória para a derradeira festa.

Em menos de dez dias o assunto estava arrumado e um enorme folguedo preparado, com pantagruélicas comezainas, bebida à discrição e um gigantesco mastro de folhagem natural salpicada com bandeirolas coloridas e balões de papel, parecendo festa dos santos populares. No ar, o cheiro dos frangos no churrasco e das febras na brasa misturavam-se com o odor adocicado que se desprendia dos braçados de jasmim e alfazema, espalhados pelo recinto.

Os convivas comiam alarvemente, conversavam animados, dançavam ao som de concertinas tocadas por macacos empoleirados em árvores africanas, que nunca vira aqui na terra, e rodopiavam e saltavam que nem loucos. Só à minha aproximação paravam, e olhavam-me com meio sorriso no rosto caminhando para aquela expressão de tristeza evidenciando o habitual pesar fúnebre e também a culpa pela folia a que se entregavam em momento de fenecimento meu.

E eu percorria o recinto cumprimentando rostos mais ou menos familiares, caminhando sem sentir os pés tocarem no chão. Flutuava por ali, já meio-desencarnado do corpo material, tornando-me aos poucos numa matéria etérea, translúcida e ectoplásmica. Afastava-me, desvanecendo, naquele cenário, deixando gradualmente de ver e de sentir os odores e a música simiesca… e esvaindo-se o sonho adormeci, profundamente.