Mostrar mensagens com a etiqueta Alarcon. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Alarcon. Mostrar todas as mensagens

Porque era loura?




Porque era loura?

Há alguma coisa de sublime no êxtase dos índios
(O Preste João)

Como são formosas as noites da Índia!...
O leitor – Diz-me isso ou pergunta-mo?
Imagino, homem! Eu nunca estive na Índia, mas tenho muitos desejos de lá ir. – Bem podia o Governo mandar-me para as Filipinas sem forma de processo! De caminho veria a Índia.
O leitor – Dê-lhe um motivo para isso que já o manda.
Bem! Mas que motivo hei-de dar? Imagine que saio agora para a rua cantarolando a Pitita e que o governo se contenta em enviar-me para o Saladero…
Terei conseguido o meu fim? – De modo nenhum. – Pois imagine que nego em público a infalibilidade do duque de Victória e que este me condena a ser passado pelas armas… Será isto ir para as Filipinas? Conseguirei desta maneira ver a Índia de caminho, como a viu o meu amigo D. Manuel Hazañas?
Ah! Abençoado Napoleão III, que manda para o degredo todos os que lhe não dão o tratamento de Majestade… Aquilo é que é um país! Ali sabe a gente em que há-de fiar-se!
O leitor – Continue.
Continuo. Como devem ser formosas as noites da Índia!
Brilham ali os astros, mais do que no céu da Europa, céu desbotado pelo uso, que me produz o efeito de um cenário velho e Philastre.
É porque aquele céu nunca serviu para mais de uma religião, enquanto o nosso conta já dez classes de adoradores, pelo menos: os iberos, os gregos, os fenícios, os cartagineses, os romanos, os bárbaros, os cristãos, os maometanos, e ultiammente, os espiritistas…
O leitor – Continue.
Continuo. Como devem ser formosas as noites da Índia!
Grandes baforadas de aromas saem do interior daquela verdadeira natureza, robusta como uma rapariga do campo; e o indolente oriental, embriagado com narcóticas essências, atafulha-se de arroz à claridade da lua, pensando na simbólica flor do Loto ou em alguma coisa desse género…
O leitor – Continue.
Era meia-noite. Tudo jazia no silêncio e na imobilidade do sono; nas margens do misterioso Ganges…
Só o Ganges não dormia! O rio sagrado deslizava por entre os bosques de bombaxes, de braganeros e de jaraques (árvores que podem ver, se quiserem, no Jardim Botânico desta cidade), reflectindo nas suas águas à claridade da lua.
Á sombra de uma árvore triste (assim denominada porque não floresce senão de noite) e a pouca distância de uma raflesia, planta que produz as flores maiores que se conhecem no mundo, pois algumas possuem três pés de diâmetro e quinze quilos de peso… (falo sério), estavam sentados dois jovens índios, não muito decentemente vestidos, valha a verdade, mas formosos quanto podem selo esses patrícios do ébano e do bambu. Os seus olhos negros… eram muito negros (na precipitação em que escrevo não me ocorre nada com que possa comparar a sua negrura). Em compensação, os seus dentes eram tão brancos como os dentes mais brancos que há no mundo.
E aqui termina o retrato dos dois jovens índios.
Ah! Esquecia-me de dizer que eram ambos machos e que se chamavam Naná e Nini – nomes extremamente interessantes.
- Fala, Naná… - disse nini com voz afectuosa, passando a mão pelo cabelo corredio do seu amigo.
Eu si todas estas coisas porque, há uns tempos para cá, ando a estudar aquele país, afim de escrever uma novela intitulada A Mãe Terra.
Quando não, nas as sabia.
Mas voltemos aos nossos índios.
- Nini… (disse Naná): Porque era loura?
E, depois de proferir estas significativas palavras, ficou mergulahdo em profunda meditação.
O mesmo pergunta o autor desta história: exactamente o mesmo! – Porque era loura?
- Explica-te, Naná. Mormurou Nini passado um momento.
- Ah! Nini…Nini… (balbuciou Naná por entre soluços). Eu amo a minha esposa como a lua ama a noite, como os pássaros amam o dia, como o mar ama a estrela da tarde. Mila é a minha alma, a minha vida, os meus olhos, a minha água!... Mas, ai! Porque é loura?
- Sossega, Naná! Disse Nini. – Tu deliras. Tua esposa não tem nada de loura… Conheço Mila e posso afirmar-te que não há ébano mais negro do que o das suas tranças…
- Ah! Sim… Bem sei que Mila não é loura; e por isso casei com ela. Os seus olhos são a noite; os seus cabelos, as sombras da morte. – Mas eu não estou falando de Mila!
- Então de quem falas?
- Escuta: Lembras-te de quando, há meio ano, eu era tão feliz porque Mila sentia que ia ser mãe?
- Sim… Lembro-me. – Era o primeiro fruto do teu amor depois de três anos de matrimónio…
- Era a realização de todos os meus desejos! Com que afã esperei o dia que minha esposa me daria um descendente que perpetuasse a minha família! Ia enfim ter um herdeiro, um sucessor, um desses príncipes da minha raça, cujos negros cabelos provam que o vil sangue dos brancos do Norte se não misturou com o nosso sangue! – Pois bem; Mila deu á luz uma menina, branca, rosada, loura como um inglesa, como uma filha dos nossos opressores, dos nossos verdugos- - Mistério incompreensível, Nini! Se os meus cabelos e os de Mila são negros como a dor, porque não eram também os de nossa filha? – Ah! Nini… Nini… porque era loura a filha de Naná?
Um grande silêncio seguiu estas palavras do príncipe sem roupa, do esposo de Mila, do pai da loura.
Depois continuou.
- Conhecendo que enlouquecia à força de pensar em qual podia ser a causa deste fenómeno inaudito, vim procurar-te para que tu, que és homem de grande inteligência, ilumines as trevas da minha razão.
Nini reflectiu durante três horas, e, por fim, perguntou a Naná:
- Já interrogaste a tua esposa?
- Foi a primeira coisa que fiz; ela, porém, tão maravilhada como eu, não vê saíuda a este labirinto. – Ainda mais: a minha casa vai, todos os dias, um capitão inglês, homem de muito talento, que nos consagra uma afeição louca e se interessa muitíssimo pela felicidade da minha família. – Pois bem; três dias esteve pensando neste mistério e não achou explicação alguma! – Portanto, vamos a ver se és mais feliz, Nini, e me fazes compreender como pode ser loura a filha de um matrimónio de cabelos negros.
- Preciso reflectir um bocado, Naná… (disse Nini) – Deixa-me só.
Naná retirou-se e Nini, então, disse consigo mesmo:
- A questão é averiguar porque era loura. – Pois, senhor, reflexionemos: - Porque era loura?
E, metendo na boca o indicador da mão direita, levantou a cabeça, ergueu os olhos para o céu e ficou mergulhado numa espécie de êxtase.
E conservava-se nesta posição quando partiu de lá o último correio.

D. Pedro de Alarcon