Dom Queijote

Resposta ao repto para participar no concurso de minicontos de Barão, que decorre entre 12 de Janeiro e 12 de Abril. Eis o primeiro dos quatro contos escritos para o evento, que determina as seguintes características: máximo de 1 pág. A4; letra Times; corpo 11, 1/2 espaços (1,5 linha).

Dom Queijote de La Mata

Espreitava-os pela folga das tábuas pregadas na janela e já tinha decidido: aqueles malditos gigantes que o cercavam iam pagar caro a afronta de terem invadido a sua mata. Ainda era noite, mais uma noite de insónia como outras que vivera nos últimos meses. Sem vislumbrar ainda o despontar da claridade, fixava, ensimesmado, os olhos vermelhos, diabólicos, dos gigantes que esbracejavam dia e noite, ameaçando desfazê-lo, e à floresta, espezinhados pelos enormes e cilíndricos corpos. Sobretudo aquele ali, mais perto, na orla do matagal abeirado à sua casa. E o homem congeminava, aquele seria o primeiro a tombar, abatido pelo zagalote já pronto na caçadeira. Maldito gigante, e os outros iguais, ciclopes nocturnos que foram povoando a sua floresta com zumbidos estranhos e irrequietos braços descomunais capazes de ceifar, cada um deles, de uma penada, uma ceara de meio hectare. Ah, malditos, pagariam caro os sustos que pregaram e os medos que alimentavam.
Vivia numa casa de taipa erguida na beira do perímetro florestal, onde em tempos criara cabras e fizera dos mais afamados queijos da região e por isso lhe chamavam Dom Queijote de La Mata. O Queijote era um tipo rijo, qualidade que a idade e a compleição esguia não deixava adivinhar, talhado pela agreste vida rural, laboriosa e pouco recompensadora, não era pessoa de muita cultura mas também não era homem de virar a cara a um inimigo, fosse ele anão travesso ou gigante feroz.
Abriu a porta energicamente e transpôs os dois degraus que o separavam do chão argiloso e do frescor da noite que findava. Na mão esquerda, a caçadeira municiada, preparada para a fuzilaria. Caminhou lentamente acercando-se do gigante mais próximo e chegado à distância que julgou segura, apontou a arma por entre dois eucaliptos juvenis, mirando os olhos rubros do portentoso adversário. Refez a pontaria, baixando-a para onde julgava encontrar-se o ventre do estranho ser, por achar demasiado alto o alvo inicial, e preparava-se para desfechar o primeiro disparo quando, à sua frente, surgiu um ofuscante clarão de luz e dentro dele emergiu uma imagem enorme, quase da altura do gigante, ocultando-o. Uma mulher suspensa no ar, de aspecto sereno e angelical levantando o braço a meia altura e expondo a palma da mão alva na sua direcção. Queijote caiu de joelhos, aturdido, e balbuciou, estupefacto: - Ai, minha Nossa Senhora, perdoai-me pelo pecado que ia cometer. Perdoai-me Santíssima mãe de Cristo! E a figura, semicerrando os olhos, esboçou um sorriso de Gioconda e baixou o braço, para logo começar a desvanecer-se na nuvem de luminosidade resplandecente. Queijote levantou-se e iniciou a breve marcha de regresso a casa, assombrado com o episódio, enquanto a visão se apagava suavemente, incluindo a legenda que se lia junto aos pés da electrizante figura feminina: Holograma multi-média, EDP 2011.

2 comentários:

TheOldMan disse...

Que desperdício, Francisco.

Uma senhora tão bonita ali no ar, e nem sequer um pastorinho para amostra.

Abraço

;-)

francisco disse...

TOM, os pastores já não levantam os olhos para as divindades, entretidos que estão com os SMS, jogos e navegações na net que os novos telemóveis proporcionam.

;)