Contestatário: - O Mundo está de pernas para o ar, nunca se viveu tamanha desgraça, a corrupção generalizou-se, os políticos não prestam, não há disciplina nem civilidade, destruíram as tradições e a cultura naufragou, há fome e miséria por todo o lado, a civilização colapsa.
Conformista: - De modo nenhum. Nunca antes, como hoje, se viveu tão bem, numa sociedade de fartura em que a esperança de vida avançou consideravelmente e a medicina tem tanto sucesso no combate às doenças. A inquietude dos indivíduos é, hoje, mais resultante da vida vertiginosa e da ansiedade consequente do que de verdadeiros e reais problemas; até se pode dizer que, com tão poucos problemas sérios as sociedades ocupam-se em criar problemas artificiais.
É, para mim, claro que a afirmação do Contestatário naufraga na constatação de que já desde a Antiguidade os mais velhos lamentavam a decadência dos costumes ou o abandono dos valores. Sócrates criticava os jovens atenienses por desrespeitarem os mais velhos e não cultivarem as virtudes; no Império Romano, autores como Cícero e Tácito referem frequentemente a perda de valores tradicionais em contraposição a uma Roma corrompida; na transição da Idade Média para a Modernidade, os humanistas do Renascimento viam a tradição escolástica como um entrave ao florescimento do espírito crítico; no século XIX, os românticos criticavam o Iluminismo por ter rompido com as tradições espirituais em nome de um racionalismo desumanizante. Estes exemplos mostram que a tensão entre conservação e transformação faz parte do próprio pulsar da História. A tradição nunca foi estática, e o seu “ataque” ou questionamento deve ser entendido como mecanismo de renovação. Já o medo do colapso civilizacional é exagerado; a ideia de que estamos perante o fim da civilização, ou de uma irreversível decadência cultural, é recorrente nos discursos conservadores ou nostálgicos e, muitas vezes, revela uma reacção emocional mais do que uma constatação histórica objectiva. O que hoje se identifica como declínio de valores é frequentemente apenas uma mudança de paradigma; por exemplo, a substituição de estruturas patriarcais por modelos igualitários, ou a substituição da autoridade hierárquica pela negociação horizontal. Como escreveu Umberto Eco, “cada geração convence-se de que a anterior foi sábia e virtuosa, e que a seguinte é ignorante e dissoluta”. Já Karl Popper advertia contra o que chamava “historicismo pessimista”, a ideia de que a história segue uma trajectória inexorável para a ruína moral. Pode parecer-nos paradoxal, mas as tradições só sobrevivem porque se adaptam, pois a rigidez mata a cultura e a flexibilidade permite-lhe sobreviver ao tempo, confirmando que uma cultura só é viva enquanto se transforma.
Quanto à afirmação do Conformista “Nunca antes, como hoje, se viveu tão bem…” é provocadora e sugere uma leitura optimista, embora ambivalente, da sociedade contemporânea, senão vejamos: “ Nunca antes, como hoje, se viveu tão bem […] a esperança de vida avançou consideravelmente […] a medicina tem tanto sucesso […]” Este trecho remete para um reconhecimento objectivo e estatisticamente comprovável, de facto a esperança média de vida aumentou de forma notável no último século, graças aos avanços da medicina, da higiene pública, da nutrição e das infra-estruturas sociais; doenças que outrora dizimavam populações (como a tuberculose, o sarampo ou a poliomielite) estão hoje sob controlo ou erradicadas em muitas regiões; o acesso à educação, à informação e a uma série de confortos domésticos transformou a vida quotidiana de forma inédita, particularmente no mundo ocidental. É, pois, justo afirmar que, em termos materiais e técnicos, a condição humana nunca esteve tão protegida e prolongada. Contudo, este bem-estar não é homogéneo. Persiste uma desigualdade profunda entre regiões do globo, e mesmo dentro das sociedades ditas desenvolvidas. A pobreza, embora reformulada, continua a existir, mas agora sob novas máscaras: exclusão digital, precariedade laboral, solidão crónica, insegurança alimentar em contextos urbanos, etc.
“A inquietude dos indivíduos é, hoje,
mais resultante da vida vertiginosa e da ansiedade consequente do que de
verdadeiros e reais problemas.” Esta afirmação entra no domínio psicológico e existencial.
A aceleração da vida, marcada pela hiperconectividade, pela cultura da competição,
pelo ruído constante da informação e pela pressão social (profissional,
estética, financeira) contribui para um mal-estar contemporâneo difuso.
Trata-se daquilo que alguns psicólogos designam por "sociedade do
cansaço" ou o "burnout do
eu". É verdade que muitos dos sofrimentos actuais não decorrem da luta
pela sobrevivência física, mas sim da angústia da comparação, da
hiperdisponibilidade, da incerteza e da fragmentação do tempo. Há uma inflação
de exigências e uma escassez de pausas. O excesso, mais do que a falta,
tornou-se problemático. Contudo, dizer que não há “problemas reais” pode ser
redutor: doenças mentais, solidão, alienação, desigualdade estrutural,
alterações climáticas e crises de habitat são problemas muito reais, ainda que
menos visíveis ou espectaculares do que os flagelos históricos.
“Com tão poucos problemas sérios as
sociedades ocupam-se em criar problemas artificiais.” Esta afirmação, embora algo
satírica, encerra alguma verdade. A obsessão por polémicas banais, a
amplificação de ofensas nas redes sociais, o consumo excessivo de
entretenimento indignado e o culto do “problema-dependente”(a perpetuação de
problemas, ou da dependência deles para justificar a existência de uma
determinada atitude), parecem indicar uma tendência de substituir a acção
cívica por dramatizações simbólicas. Quando os problemas básicos estão
resolvidos, os indivíduos tendem a direccionar a sua inquietude existencial para
novos objectivos — nem sempre relevantes — como se o desconforto fosse uma
constante humana. Por outro lado, esta mesma afirmação pode escorregar para uma
certa insensibilidade: o que parece “artificial” a uns pode ser vivido como
opressivo por outros. As lutas contemporâneas em torno da identidade, da
justiça climática ou da desigualdade de género, por exemplo, são muitas vezes
desvalorizadas com este tipo de argumentação. A
afirmação é, portanto, pertinente enquanto provocação filosófica, mas comporta subtilezas:
há progresso, sem dúvida, mas há também novas formas de sofrimento, mais
subtis, menos gritantes, mas nem por isso menos reais.
Em síntese, as afirmações de ambos - Contestatário e Conformado -, enformam um paradoxo: vivemos numa era de abundância material e técnica, mas de escassez espiritual, afectiva ou de sentido. A inquietação moderna não nasce da fome, mas da saturação. Não lutamos tanto para sobreviver, mas para nos definirmos, para nos distinguirmos, para nos justificarmos. Há aqui um eco dos ensinamentos de Epicuro ou de Montaigne: o excesso de conforto físico e material não suprime o desconforto da alma. E talvez seja esse o desafio do nosso tempo, aprender a viver com abundância sem perder o sentido da medida e do essencial.
Fontes consultadas:
.BAUMAN, Z. Vida Líquida (2005)
https://circulosemiotico.wordpress.com/wp-content/uploads/2012/10/vida-liquida-zygmunt-bauman.pdf
.ROSA, H. Social Acceleration, A New Theory Of Modernity. Ed.
COLUMBIA UNIVERSITY PRESS, 2015.
.ROSLING, H. Factualidade - Dez razões pelas quais estamos errados
acerca do mundo, e porque as coisas estão melhor do que pensamos. Ed. Temas e
Debates, 2019.
.SALECL, R. A Angústia da Liberdade: Ediciones Godot (2023)
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