Lagos e os barcos

Das canoas pré-históricas aos gigantescos navios que usam as mais recentes tecnologias de propulsão ao serviço da rapidez e do conforto, a história dos barcos é uma fascinante aventura do engenho, da arte e da técnica humana. Lagos também escreveu relevantes páginas dessa história.
Embora não se conheçam pormenores da aventura marítima dos povos que aqui viveram em épocas que remontam à pré-história, ao período pré-clássico e à chegada dos primeiros navegadores fenícios, é seguro afirmar que aqui se terão construído barcos e realizado navegações fluviais e costeiras nesses tempos longínquos. E não podia de deixar de ser assim, considerando que os cursos de água e os oceanos foram, durante milénios, as vias mais eficientes para o contacto comercial e cultural entre povos distantes. “Até à conquista de Lagos por Bruto [138-136 a.C.], os seus habitantes usavam barcas de couro, forradas de pelles, que vedavam as àguas, e n’ellas mastreação de madeira delgada, fácil de dobrar para não ser prejudicada com o impulso do vento” (in “Monografia de Lagos” de M.J.P. Rocha).
Dada a sua posição geográfica, relativamente protegida dos ventos Norte e Oeste, a antiga Lacóbriga foi, séculos antes da era cristã, porto concorrido onde inúmeras embarcações vinham carregar trigo, cera, azeite, peixe, sal, coral, louças e tecidos de fabrico local.
Hoje, Lagos tem só um estaleiro naval, mas possuiu vários ao longo da sua história. Aqui desenvolveram a sua actividade inúmeros mestres carpinteiros, calafates e outros que construíam uma diversidade de barcos. Por ‘calafate’ pode entender-se aquele que constrói, na totalidade, embarcações de madeira. Com o barco todo montado, passa ao trabalho de calafetagem propriamente dito, em que preenche todas as frinchas da madeira.
Lagos, mercê da sua incontornável história náutica, inscreveu de forma indelével o seu contributo no grande livro da aventura marítima portuguesa. Daqui partiu Gil Eanes a caminho do temível Cabo Bojador, numa barca, plausivelmente, de construção local. E nela tornou, depois de ultrapassado esse cabo que escondia mares, terras e gentes desconhecidas ao mundo europeu de então; corria o ano de 1434 e dez anos depois uma companhia de lacobrigenses comandada por Lançarote de Freitas arma seis caravelas e parte para a costa africana. A epopeia dos descobrimentos marítimos portugueses estava em marcha.
Em 1445 a frota da segunda campanha de Lançarote de Freitas, composta por 14 caravelas, zarpou de Lagos rumo à ilha de Tider na costa da Mauritânia onde se reuniria à frota de 12 caravelas armadas em Lisboa e na Ilha da Madeira. Nunca antes se reunira uma armada tão grande para tal fim. Directamente envolvida na epopeia das viagens exploratórias do século XV, Lagos terá, seguramente, contribuído para essa importante revolução tecnológica que foi o surgimento dos navios de alto bordo portugueses.
Nas proximidades da Rua da Capelinha terão existido, desde o tempo do Infante D. Henrique, sucessivos estaleiros com rampa e zorra para o ‘bota-abaixo’. Ali se perpetuou essa actividade naval e a sua memória, até que as obras para construção da Avenida dos Descobrimentos destruíram os derradeiros vestígios desse passado.
O Foral de Lagos, outorgado por D. Manuel em 1504, atesta a importância da construção naval neste período, estabelecendo a isenção de dízima na venda de navios aqui construídos, desde que tivessem 130 toneladas, isentando igualmente as transacções das madeiras usadas na construção desses navios. No século XVI, a qualidade dos barcos construídos nos estaleiros de Lagos era muito conceituada pois, mesmo sendo proibido por lei, exportavam-se muitos dos barcos aqui construídos, chegando a duplicar ou triplicar o seu valor no mercado de destino.
Caíques, botes, barcas das armações, lanchas, chatas, chalupas e barcaças, barcos de pesca, cabotagem ou navegação oceânica, uns a remos, outros à vela; a que se juntam os gasolinos e as traineiras do início do século XX, propulsionados pelo cavalo-vapor enformam, com as ancestrais barcas, barinéis e caravelas pesqueiras, o universo das embarcações que terão zarpado e demandado o porto de Lagos, ao longo dos tempos.
Em 1840 Lagos tinha 400 marítimos, pescadores das 13 artes existentes, e contava em actividade 16 lanchas, 8 rascas e 8 caíques de carga, maioritariamente construídos em Lagos. Esta herança na qualidade da construção naval chegou até aos nossos dias. A canoa “Gavito” de Mestre Adelino, operacional nos anos 40 do séc. XX, era muito veloz sendo por isso famosa no porto de pesca de Lagos. Ainda em meados do mesmo século foi aqui construída, para uma empresa local, uma chalupa da pesca do albacora, baptizada “Maria Isabel II”.
Dos calafates do início do século XX, podem referir-se o mestre Narciso e o mestre Pedro, ambos construtores de botes em madeira. Este último exercia o seu mister na Rua da Capelinha.
Encerrado nos finais dos anos 30 do século XX, o estaleiro de S. Roque, situado no areal da antiga Praia de S. Roque (integrada na Meia Praia, possivelmente devido ao terramoto de 1755), propriedade da firma Fialho Lda., procedia à reparação dos barcos das suas armações. Ali se notabilizou o mestre Marafusta.
Em frente à estação do caminho-de-ferro laborou outro estaleiro até finais dos anos 70. Simultaneamente, funcionou também o Estaleiro J. A. Pimenta e em meados dos anos 70 instalou-se em Lagos a firma Sopromar, ambos no perímetro da doca pesca, sendo este último o único estaleiro actual.
Os barcos são, pois, indissociáveis da história de Lagos.



Fontes consultadas:



- CARDO, Mário, “Lagos Cidade, contributos para uma monografia”, Lagos, Grupo dos Amigos de Lagos, 1998.
- CORRÊA, Fernando Calapez, “A Cidade e o Termo de Lagos no Período dos Reis Filipes”, Lagos, Centro de Estudos Gil Eanes, 1994.
- CORRÊA, Fernando Calapez, “Memórias Paroquiais das Freguesias do Concelho de Lagos” in “Fontes Setecentistas para a História de Lagos”, Lagos, Centro de Estudos Gil Eanes, 1996.
- LOPES, João Baptista da Silva, “Corografia ou Memória Económica, Estatística e Topográfica do Reino do Algarve”, Faro, Algarve em Foco Editora, 1988.
- LOUREIRO, Rui Manuel, “Lagos e os Descobrimentos Portugueses até 1460”, Lagos, Câmara Municipal de Lagos, 2008.
- MAGALHÃES, Joaquim Romero, “Para o Estudo do Algarve Económico Durante o Séc. XVI”, Lisboa, Edições Cosmos, 1970.
- ROCHA, Manuel João Paulo, “Monografia de Lagos”, Faro, Algarve em Foco Editora, 1991.
- VASQUES, José Carlos, “Contributos para as Memórias de Lagos”, Lagos, Grupo dos Amigos de Lagos, 2008.
- VASQUES, José Carlos, – Conversas com José Carlos Vasques.

2 comentários:

Canalha de Lagos disse...

Excelente trabalho.
Abraço e continuação.

francisco disse...

Agradeço o elogio (embora não esteja habituado - nunca me habituarei, acho), mas reparará que esta publicação não acrescenta nada ao texto publicado nas páginas da agenda municipal de eventos "5entidos" (em papel, e também online), e que no fundo é apenas a sua republicação.

O motivo da republicação aqui, e no blogue Lagos, de vários desses artigos produzidos para a “5entidos” prende-se com a minha decisão em contrariar a situação de omissão da autoria dos textos, adoptada pelas publicações municipais. Isto não é de estranhar pois já com as fotografias é a mesma coisa. Mas é de estranhar quando se compara com uma planta de construção assinada por engenheiro ou arquitecto – aí a assinatura é visível. Enfim…
Eu até compreendo que assim aconteça com textos de informação produzidos pela autarquia. Já acho errado que aconteça com artigos que incluem uma componente de pesquisa e a produção de aspectos subjectivos: a minha interpretação dos factos; a interpretação dada também pelas pessoas que incluo nas pesquisas que faço; a possibilidade de cometer erros quer na escolha das peças a pesquisar quer na sua interpretação, e que não deviam ficar sob a responsabilidade da autarquia e do seu representante máximo, como é o caso. Mesmo compreendendo que se trata de uma peça de divulgação de eventos e de prestação de informações úteis, de formato reduzido, e que isso justifica a omissão de alguns elementos, como a indicação de autoria – e no fundo aceito isso pacificamente -, ou exactamente por esse facto, sinto-me com o direito de, alimentando a minha vaidade pessoal, reclamar a autoria daquilo que criei.
Claro que se não gostarem, têm remédio… não me faltam assuntos e temas sobre que escrever e local onde publicar.

Saúde.


P.S. - estranhará esta resposta a algo que não perguntou mas, partindo do seu elogio aproveitei para responder antecipadamente a uma questão que alguém há-de colocar.