hoje não há gravuras*


Gur-Gur e DaMog discutiam à sombra do enorme rochedo. Para Gur-Gur, desejoso de ensaiar a sua veia artística, aquela era a oportunidade esperada. Desejava ardentemente imitar os outros homens da tribo. “Expor” as imagens mágicas que a rocha cinzenta encerra. À cintura, enfiado numa faixa de pele de cabra, preparado, está o pico de pedra, uma das mãos segura um imponente fémur de urso, qual moca de combate, a outra mão desenha gravuras imaginárias no ar, enquanto argumenta com o mais velho. DaMog é que não está para isso. O velho, espécie de chefe da tribo, entende que não vale a pena perder tempo, os muitos dias necessários para gravar as imagens mágicas na pedra. Sabiam lá onde é que os seus quinquilhanetos decidiriam construir a barragem a que haveriam de chamar Bravura? Para quê tanto trabalho, então? Para depois as imagens ficarem submersas no fundo da represa, e os espíritos aí aprisionados? Não. Primeiro construíssem a bendita barragem, depois logo se veria onde gravar as evocações dos espíritos do veado e do urso, do tigre e do lobo, da fecundidade e da fertilidade, e os geometrismos mágicos, os heliocêntricos símbolos da vida. Assim decidira. Perto, alheios a esta discussão, homens acocorados em círculo separam lascas, trabalhando com punções de osso, sobre núcleos de sílex, donde resultam sugestivas pontas de lança em forma de folha de loureiro. Gur-Gur lançou um último olhar para o outro lado do vale, em direcção ao afloramento rochoso e, voltando-se para Norte, começou a caminhar para os campos de caça. Ao fundo, a algumas léguas de distância, enorme e dominadora, vestida de densa e rica vegetação, e coroada com um aro de neblina no topo, a montanha a que mais tarde viríamos a chamar de serra de Monchique, assiste silenciosa. Não era desta vez, ainda, que iria participar na Ourquema, o ritual de representação dos espíritos. Resignado, silencioso e lesto, afagando os laços de caça dobrados sobre o ombro esquerdo; seguro, no fémur de urso que Vaco, o irmão mais velho, lhe oferecera dias antes, e que lhe prolonga o braço direito, assim, ameaçador, Gur-Gur caminha. Talvez apanhe um veado. Quinze mil anos passaram para que pudéssemos descrever a resignação de Gur-Gur, filho de Laot-Gur, habitante do território que hoje corresponde ao concelho de Lagos. Gravar na Rocha, talvez noutra oportunidade.

* Escrito e publicado em meados de 1995, em plena "Batalha do Côa". Em síntese, e para aqueles que não sabem do que falamos:

"
As gravuras não sabem nadar"
Como nunca tinha acontecido em Portugal, multiplicam-se acções cívicas para salvar as gravuras da submersão, que leva um jornalista a falar de gravuras "da consciência cívica". A acção dos arqueólogos é seguida de perto pelos estudantes que se organizam em associações para a defesa das gravuras: "Côa Vivo", Associação Juvenil Olho Vivo, "Movimento de salvaguarda da Arte do Côa", "Associação para a Defesa das Gravuras Rupestres do Foz Côa", constituída essencialmente por estudantes da Escola Secundária de Vila Nova de Foz Côa, a quem devemos o famoso slogan: "As gravuras não sabem nadar". Eles recebem o Presidente da República, que acaba por ir ver as gravuras em Fevereiro 95, pronunciando-se a favor da sua preservação. A organização de um "mega-acampamento" de jovens de todo o país em Vila Nova Foz Côa, em Abril 95, é o auge desse movimento juvenil a favor da arte do Côa. Organizam-se debates públicos sobre o tema em Lisboa e em Braga, onde a audiência de arqueólogos, historiadores e estudantes é aumentada pela presença de "cidadãos comuns". Multiplicam-se nesse ano artigos de opinião de pessoas oriundas dos mais variados horizontes, cujos autores defendem, na maioria, a preservação das gravuras.
Um "happy end" - Perante tanta resistência por parte da opinião pública, o Governo de Aníbal Cavaco Silva acaba por não tomar nenhuma decisão antes da eleições de Outubro 95. O recém-eleito primeiro-ministro, António Guterres, anuncia a suspensão das obras da barragem logo no primeiro dia de debate do programa do Governo no Parlamento. No final de 95, o projecto de barragem é definitivamente suspenso.
in http://www.uc.pt/fozcoa/batalha.html#nadar

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