Um momento do Plistocénico


Há cerca de um milhão de anos nas cercanias desta terra a que hoje chamamos Lagos, um grupo de proto-humanos (daqueles a que haveríamos de chamar homo erectus ou “senhores do fogo”) espreitam por entre as ramagens baixas a manada de javalis que se rebolam nas margens do lago, soltando grunhidos de satisfação. Na mesma margem, mais adiante, um macho corpulento de presas magníficas foça na lama, talvez em busca de sementes dispersas.
Lentamente, um a um, de joelhos e cotovelos apoiados no chão, os “homens” vão avançando para uma posição frontal ao vento, descrevendo um arco de círculo que os aproxima da caça. Um ronco grave traça a quietude da paisagem. De cabeça baixa e olhar atento, perscrutando os ruídos da savana, o macho isolado volta-se na direcção dos “homens”, talvez denunciados por um descuidado agitar de folhagem. Tarde demais, a um salto o grupo alcança a manada e, de maxilas de veado em punho uns, outros erguendo seixos toscamente talhados, desferem golpes à direita e à esquerda, certeiros o suficiente para fazer jorrar o sangue quente das cabeças, gargantas e ventres. Alguns dos suínos que se encontram mais afastados fogem, avisados pelos grunhidos furiosos do dominante. Os caçadores, esses, já não saem dali até satisfazerem o seu apetite e saciarem a fome. Enquanto uns sugam o sangue que brota dos corpos escuros, outros já penetraram o crânio com a pedra pontiaguda e deliciam-se com as mioleiras alvas e macias.
Agora, já perto do crepúsculo, os únicos ruídos saem das bocas gulosas, do rasgar e trincar primeiro, depois os suspiros de satisfação e saciedade.
Ténue, e quase imperceptível, brame um auroque, lá longe na orla da savana.
O sol mergulha no horizonte, e a noite ergue-se inquietante. Os “homens”, agora em pausa, olham em redor e ensaiam, no seu interior, o pavor da escuridão que se aproxima, e com ela os rugidos dos grandes felinos.
Ao longe soam brados de quem chama insistentemente. Um dos caçadores, de pé, com um enorme semi-maxilar de veado numa mão e uma perna de javali na outra, meneia a cabeça e exclama algo. Os outros levantam-se de imediato e o grupo inicia uma caminhada pesada e cautelosa, de regresso à gruta que abriga o clã.


F. Castelo, 1998

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